‘Morna câ ê sô dor’, nem só amor

Por GN em

Gláucia Nogueira e Djoy Amado

“Morna ca ê sô dôr”, diz a capa do LP lançado por Humbertona em 1969. Um disco que tem mesmo esse título, um LP recheado de solos de mornas e koladeras no qual o guitarrista é acompanhado por Waldemar Lopes da Silva, Toy d’ Bibia e Frank Cavaquinho. No verso da capa, lê-se que a morna é um instrumento de que o povo cabo-verdiano se serve para exprimir o seu sofrimento mas também para afirmar a sua esperança no futuro. Um texto que salienta o papel da morna como uma arma na luta pela independência, segundo o qual, mesmo quando Cabo Verde viver numa situação melhor do que aquela que se enfrentava em finais dos anos 1960, a morna continuaria a ser criada. Como de facto aconteceu. “Não, morna ca ê sô dôr”, reafirma o texto que, segundo o sociólogo Luiz Silva, terá sido escrito por Zó Barbosa, na época estudante na Universidade de Louvain na Belgica, tal como Humbertona.

Nessa mesma linha de ideias, procuramos exemplos em que a morna fala de outros temas que não a saudade, a melancolia e o amor. É verdade que estes temas estão presentes em muitas delas, assim como estão em composições nos mais variados géneros, pelo mundo fora. Mas também é verdade que outros assuntos têm sido ao longo do tempo trazidos para as letras de mornas. 

Uma pesquisa em busca de casos em que as letras de mornas têm como temas questões exteriores ao contexto sentimental traz uma série considerável de exemplos, que aqui apresentamos, sem pretensão de obter uma lista exaustiva.

Moacyr Rodrigues na sua obra A Morna – O papel da morna na construção da identidade nacional em Cabo Verde (2017) apresenta um levantamento nesse sentido, no qual nos baseamos, acrescentando alguns itens, ao elaborar esta lista:  

Textos de teor político e contestatário

“Abissínia” (Anton Tchitche) e “Hitler ca ta ganha guerra” (B.Léza) são dois exemplos nesta área.

Textos que apontam para dramas sociais

As vicissitudes resultantes das secas geradoras de pobreza e fome, como “Fidjo Magoado”, de Jotamonte; “Rotcha Nu” (Frank Cavaquinho); “Sina de Cabo Verde” (Gabriel Mariano e Jacinto Estrela); “Fedagosa” e “Rotcha scribida” (autoria desconhecida) são exemplos que se encaixam neste segmento, assim como a necessidade de emigração. Por exemplo, a célebre “Sodade” (Amando Zeferino), “Pinote na vapor” (Manuel d’Novas), “Andorinhas di bolta” (Eugénio Tavares), “Fidjo de Ninguém”, (Djunga de Biluca e Luís Morais), entre várias outras.

A subordinação ao poder das autoridades

Como exemplos de letras de mornas com este tema, está o recrutamento para o serviço militar, que a morna “27 de setembro” (Djidjungo) evidencia; o impedimento de emigrar para o Brasil (que B.Léza deixa claro em “Brasil”); arbitrariedades do poder colonial, como “São Vicente di Longe”, de Lela de Maninha; ou a questão das migrações forçadas para Angola ou São Tomé e Príncipe, que fica patente em composições como “Angola” (Lela de Maninha), “Camin pa São Tomé” e “Céu de São Tomé” (ambas de Abílio Duarte). 

Outro levantamento[1] de mornas que não têm como foco as questões do par romântico mostra, por exemplo:

A amizade como tema central  

“Tributo Final”, de Manuel d’ Novas; um episódio dramático ocorrido na ilha de São Nicolau em que o compositor quase perdeu a vida (“Lagoa, Tony Marques).

Análise sociopolítica e crítica social

“Lamento d’un emigrante, de Manuel d’Novas; “Cabo Verde d’one 2000”, de Morgadinho; “Lamento camponês” (Ney Fernandes).

Homenagem a determinados personagens

“Neto”, de Tonecas Marta, fala sobre Agostinho Neto, líder da independência de Angola, que por imposição da polícia política portuguesa viveu algum tempo na ilha de Santo Antão, exercendo a medicina); “Sodad nho Roque”, de Manuel d’Novas, alusiva ao escritor e professor António Aurélio Gonçalves; “Poeta Di Valor”, composição de Pedro Rodrigues referindo o seu avô, o poeta e jornalista Pedro Cardoso. Fernando Quejas, por sua vez compôs “Sodade B.Léza”, ao receber a notícia da morte do compositor e Daniel Rendall homenageou Amílcar Cabral em “Cabral ca mori”.

Já no seu texto da década de 1950, “Subsídios para o estudo da morna”[2], José Alves dos Reis (regente de banda e professor de música) apontava vários “ciclos” da temática da morna, como o da despedida, o das secas, o do amor, o da troça risonha, o da cordialidade (citando o exemplo de “Barca Sagres”), o dos emigrados (referindo as mornas compostas na América do Norte) (Reis, Artiletra, nº 16/17, 1994), evidenciando-se também aqui que a temática da morna é mais abrangente do que muitas vezes se afirma.

Mornas de luta e de exaltação à independência

Refira-se ainda a mensagem de luta e esperança no fim da era colonial que se encontra nas mornas compostas por combatentes da independência, como o já citado Abílio Duarte (“Areia de Salamansa”), Waldemar Lopes da Silva (“Nova Aurora”, “Mãe”), Luís Fonseca “Morna nobo” e Djunga d Biluca (“Fidjo de ninguém”) . Nestas mornas, subjacente ao texto sentimental, é evidente a possibilidade de uma outra leitura, de teor político, caso em que “Nova aurora” é exemplar, já que a aurora referida é a de uma nova era para o povo cabo-verdiano. Por sua vez, “Aonte e aoje” (Kaká Barbosa) compara os tempos coloniais e a vida pós independência.    

Referências:

Humbertona, LP Morna câ ê sô dor, Morabeza Records, Roterdão, 1969.

Quejas, Fernando. Entrevista em Lisboa, 2004, à autora.

Reis, José Alves dos. “Subsídios para o estudo da morna”. Artiletra, Ano III, nº 16/17 (1994).

Rodrigues, Moacyr (2017). A Morna – O papel da morna na construção da identidade nacional em Cabo Verde. Lousã, ed. de autor.

[1] Levantamento realizado por Djoy Amado para a elaboração deste artigo.

[2] Texto previsto para ser publicado em 1954 numa publicação da época, o que acabou por acontecer só 30 anos depois, no nº 21 da revista Raízes (1984). Mais tarde foi reproduzido parcialmente pelo jornal literário Artiletra (nº 16/17 (1994).

Agradecimentos pela colaboração na construção desta página: Jorge Custódio, Luiz Silva

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