Kola Son Jon no Porto Novo

Por GN em

Por Gláucia Nogueira

São João, patrono do dia 24 de junho segundo o calendário católico, é o santo mais festejado em Cabo Verde e responsável por uma das maiores festas populares do país. No município do Porto Novo, Ilha de Santo Antão, o chamado Kolá Sonjon[1] reúne milhares de pessoas numa grande romaria. Com o som poderoso dos tambores, muita cor, dança e alegria. 

O Kolá Son Jon é uma expressão cultural híbrida, refere a investigadora Ana Flávia Miguel, autora da dissertação Kola San Jon, Música, Dança e Identidades Cabo-Verdianas. É, nas suas palavras, “marcado por uma forma de resistir ao catolicismo incorporando nas práticas religiosas católicas modos de celebração de origem africana, reconstruídos, certamente, mas que não replicam nenhum outro modo de celebração importado do ocidente”. Desta forma, prossegue, “os cabo-verdianos encontraram um modo de mostrar a sua diferença, em relação ao colonizador, ‘negociando’ de algum modo aquilo que tinham que adoptar não deixando de incorporar a sua ‘identidade’”. 

Atualidade 

A cada ano, o mês de junho no Porto Novo é recheado de atividades festivas e de convívio, como gincanas, torneios desportivos e de baralho, entre outras, prenunciando a data da comemoração. Corrida de cavalos, feira agropecuária, baile popular e concertos são alguns dos eventos que habitualmente antecedem o dia de São João. 

Infografia mostra trajeto da romaria. Vídeo cedido por Elenir Santos

Na manhã do dia 23, inicia-se a romaria, na capela de Ribeira das Patas, rumo à  Ermida de São João, na Ribeira de Igreja, no Porto Novo. O enorme cortejo, com milhares de pessoas, acontece ao longo de todo o dia. No dia 24, pela manhã, há missa e procissão, que percorre vários bairros da cidade. No dia 25, o santo é levado de volta a Ribeira das Patas, com um novo percurso de 22 quilómetros e muita gente.  

Durante a romaria, quando o santo é tomado pelos braços do povo, há tambores, comidas, bebida, os pares a dançar, durante todo o trajeto, diante das várias capelas por onde a multidão vai passando, esclarece Alcides Lopes, autor da dissertação de mestrado Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: Música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo. Quando chega na Ribeira da Igreja, hoje em dia alguns tambores entram no templo, o que no passado, segundo o investigador, era proibido.

À parte o aspecto religioso, o que realmente chama a atenção nos festejos de São João no Porto Novo, são os ruidosos grupos de tamboreiros, que são acompanhados pelas chamadas coladeiras, mulheres que dançam freneticamente e que, aos pares, em determinados momentos “executam o movimento de recuo e avanço se tocando na área da pélvis de forma firme e compassada em um seis por oito, no ritmo dos tambores”, escreve Lopes. O autor refere que os pares podem ser formados por duas mulheres; por um homem e uma mulher; dois homens, muito raramente; e pode haver um homem a dançar com duas mulheres. 

Oh Sébe! Oh Sébe!

Oh Jon Colá ne mim

P’am podê colá ne bô.

Oh Sébe! Oh Sébe!

Oh Jon colá per riba

Per bóche é ne d’bô conta.

Oh Sébe! Oh Sébe!

Oh Jon Colá ness pic

Ness pic de M’ri d’Aninha – Versos cantados nos momentos de dança, citados em Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: Música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo

Outro personagem desses cortejos são determinados homens (chamados por vezes capatazes), que disciplinam a dança, usando apitos para se comunicar com as coladeiras. “Eles mandam na organização, trocando os pares ou pegando coladeiras para dançar”, refere Alcides Lopes do no seu trabalho. 

Há também os navios multi coloridos e decorados com bandeirinhas, com uma abertura no meio, onde cabe uma pessoa. São manejados como se estivessem navegando. “Quem navega o navio se veste como um oficial de marinha”, escreve Lopes. Sobre a farda, o homem que o conduz traz fitas, rosários (colar feito com amendoim, grãos de café e pipoca) e roscas (biscoito em forma de bonecos). O investigador esclarece que o navio “evolui como se estivesse enfrentando uma tormenta, passa pelo círculo de tambores causando ondulações nos corpos dos tamboreiros que se movem para facilitar a sua transição”. O navio passa também entre as coladeiras, “causando o mesmo efeito coreográfico”. 

História 

Toda essa animação que se vê hoje por ocasião do dia de São João já era assim há muitos anos.

Em 1881, um relato de Guilherme de Cabo Verde (pseudónimo do escritor Guilherme Dantas) refere que, durante os três dias que antecederam a festa, navios “carregadinhos de gente” partiram do Mindelo rumo ao Porto Novo.

“Reuniram-se mais de cinco mil pessoas de ambos os sexos, dormindo à claridade das fogueiras, tendo por casa a vasta abóbada celeste e por fofa cama o chão”, escreve o cronista, num texto publicado cerca de duas semanas depois da festa no jornal A Imprensa (07.07.1881). 

“Homens e mulheres recordam-se com saudades deste dia” por se terem divertido tanto, escreve o autor, comentando que mais tarde a consequência da festa será o aumento do número de nascimentos.

“Amor a toque de tambor – é a divisa de todos logo que lá chegam”, escreve Guilherme de Cabo Verde, e prossegue: “Quinhentas caixas fortes rufando continuadamente harmonias de acordar finados, chamam à ordem as raparigas, mais formosas enfeitadas de flores variadas e de fitas as mais lindas”.

Festa migrante 

Devido aos fluxos migratórios, festejos de São João foram encontram-se hoje como parte das atividades festivas de comunidades cabo-verdianas em outros países. Em Roterdão, por exemplo, realiza-se anualmente uma grande festa. 

Na Amadora, arredores de Lisboa, o bairro da Cova da Moura realiza desde 1991 a sua festa do Kolá Son Jon, com um cortejo que percorre as ruas do bairro. O evento tem influências dos festejos em Santo Antão, São Vicente e São Nicolau, sendo a sua reconstrução por uma comunidade de imigrantes e descendentes. “Uma festividade com características inclusivas”, refere Alcides Lopes, na sua tese Sobre adriças e cabrestos: o Kola San Jon de Cova da Moura e as formas resilientes da tradição na diáspora africana em Lisboa-Portugal.   

Por sua vez, Ana Flávia Miguel refere que, uma vez fora do seu espaço de origem, o Kolá Son Jon transforma-se realmente numa prática cabo-verdiana, aceite em Portugal enquanto tal e superando, entre os cabo-verdianos, as diferenças de ilha para ilha. 

O grupo de Kolá Son Jon da Cova da Moura faz atuações não só no mês de junho, em comemoração do dia de São João, mas ao longo do ano, a convite de determinadas entidades, e mesmo fora de Portugal. Para Miguel, o Kolá Son Jon “tem já um papel de embaixador da cultura cabo-verdiana em Portugal, pela projecção que tem nos espaços públicos de representação fora do bairro”. 

Em 2013, a partir de uma candidatura elaborada pela Associação Cultural Moinho da Juventude, a prática do Kolá Son Jon foi inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial de Portugal.   

Criações musicais com base no Kolá Sanjon 

Ao longo do tempo, foram vários os artistas cabo-verdianos com trabalho autoral que já se debruçaram sobre o toque dos tambores do Kolá Sonjon – ou toca, na linguagem local –, estando ou não ligados à ilha de Santo Antão. Afinal, São João é o santo mais festejado em todo o país. 

Em termos de registos discográficos, provavelmente o LP Pa Hora d’Ligria dos Más Pênád (1975), de Zé Júlio, um disco com temas de forte teor político, apresenta o tema instrumental “Alhandra”, em que os tambores são marcantes. 

Na sequência, refira-se Sanjon na Ribera de Jilion (1976), também este um álbum inserido no contexto da música de intervenção, com composições cujas letras exortam à luta pela independência. Foi gravado na Holanda por Frank Cavaquinho, Jon Spedinha, Chala e outros músicos. Um disco com uma capa curiosa, já que traz as fotos dos músicos, mas não os seus nomes. 

O grupo Kolá III, formado nos anos 1980, na sequência dos dois primeiros grupos com este nome, traz a batida do kolá como base para guitarras de rock e o sax de Teck (Péricles Duarte), o seu fundador.      

Na década de 1990, o grupo Renascimento, de Santo Antão, gravou o tema “Nha Desoa”, que aparece no álbum de recolhas Cap Vert  – Un Archipel de Musiques (1999).  

Mais recentemente, outros personagens de São Vicente tomam o Kolá Sonjon como referência rítmica para os seus trabalhos musicais. Por exemplo, Nando Lopes, artista particularmente dedicado ao som frenético dos tambores. Por sua vez, Teté Alhinho, evoca as suas recordações de infância no Mindelo no tema “Mi ma nha San Jon”, lançado como EP.  

Refira-se ainda o Vasco Martins, que tem várias composições alusivas ao ritmo dos tambores, seja na sua produção de música orquestral, seja como compositor na área da música popular. É ele próprio que revela, no seu canal Youtube, ao apresentar um conjunto de temas seus neste domínio: “Desde a adolescência, quando o Vlu eu e o Tey formamos um trio (74/75) e fomos os pioneiros a ir à ‘fonte do Sanjon’, que este ritual a 6/8 ancestralmente ligado à fertilidade da terra tem sido um ritmo constante na minha música ao longo das décadas, em diversas formações e estéticas: para orquestra sinfónica, em grupo, no violão, na música eletrónica, no canto, quarteto de cordas…” 

De São Nicolau, Paulino Vieira apresenta o toque dos tambores do Kolá Sonjon no tema “San Jon na praia Branca” no CD Nha Primeiro Lar.

Para saber mais

  • Cabo Verde – Festas de Romaria, Festas Juninas, Moacyr Rodrigues, ed. do autor, Mindelo, 1997. 
  • Kolá San Jon, Música, Dança e Identidades Cabo-Verdianas, dissertação de mestrado de Ana Flávia Miguel, 2010. 
  • Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: Música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo, dissertação de mestrado de Alcides Delgado Lopes, 2015. 
  • Sobre adriças e cabrestos: o Kola San Jon de Cova da Moura e as formas resilientes da tradição na diáspora africana em Lisboa-Portugal, tese de doutoramento de Alcides Delgado Lopes, 2020.

Ouvir

Referências:

Lopes, Alcides Delgado. Os tamboreiros da ilha das montanhas: música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Univesidade Federal de Pernambuco, 2015.

Lopes, Alcides Delgado. Sobre adriças e cabrestos: o Kola San Jon de Cova da Moura e as formas resilientes da tradição na diáspora africana em Lisboa-Portugal. Tese de doutoramento em Antropologia, Univesidade Federal de Pernambuco, 2020.

Miguel, Ana Flávia. Kolá San Jon, Música, Dança e Identidades Cabo-Verdianas. Dissertação de mestrado em Etnomusicologia, Universidade de Aveiro, 2010.


[1] A grafia Kolá Son Jon segue a pronúncia em Santo Antão, razão pela qual é adotada aqui, embora seja habitual ver-se grafado Kolá Sanjon em textos nos media, discografia, trabalhos académicos e outros.

Agradecimento a Alcides Lopes e a Elenir Santos pelo apoio na elaboração desta página.

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