Morna

Por GN em

A dança da morna. Fonte: Mendes Correa, Ultramar Português II – Ilhas de Cabo Verde, 1954

“Na verdade, sempre o facto nos intrigou:

um povo batido pela adversidade

e cantanto ou exaltando a ternura.”

Manuel Ferreira em A Aventura Crioula

A morna, de ritmo lento que a alguns poderá fazer lembrar o fado português e a outros o samba-canção brasileiro, é um dos géneros musicais emblemáticos de Cabo Verde. Desde dezembro de 2019, faz parte da lista da Unesco representativa do Património Imaterial no mundo.

A sua origem, assim como a própria palavra “morna”, permanece um debate sem fim, rico em especulações, já que os registos históricos até agora conhecidos não são muito abundantes e a transmissão oral foi o veículo que a fez chegar aos nossos dias. Influências as mais diversas – das cantigas de trabalho à música do Magrebe, passando pelo fado e pela modinha brasileira – têm sido cogitadas, mas até hoje sem consenso.

História

No século XIX, as referências escritas à morna são raras, e aquelas que existem, na segunda metade do século, não apontam para o género musical com as características que hoje conhecemos (sentimentalismo e lentidão) mas sim para algo que faz pensar num convívio com música e dança. Tal como se verifica em outras áreas, uma mesma palavra no contexto musical tem diferentes significados ao longo do tempo.

Por outro lado, a palavra “morna” não aparece em recolhas de músicas publicadas em finais do século XIX (Almanach Luso-Africano, 1892 e 1895, e Músicas Populares de Cabo Verde, brochura com partituras, editada pela Sociedade de Geografia de Lisboa em 1885). Só a partir do início do século XX começam a aparecer na imprensa cabo-verdiana alusões à morna como um tipo de música praticado em Cabo Verde –Ver Documentos sobre a morna.

Uma história interessante desses princípios do século XX é o episódio em que o regente da Banda Municipal da Praia, o Mestre Guimarães, recusou-se a incluir a morna no repertório da banda, com a alegação de que a morna “não é música”, porque a palavra não constava em nenhum dicionário da época como definição de um género musical. Diante dessa atitude, os dois jornais então existentes, A Voz de Cabo Verde e O Futuro de Cabo Verde, embora rivais, responderam em uníssono com críticas e ironias contra Guimarães, que acabou por recuar na sua rejeição pela morna. O episódio mostra que, já naquela época (1913), membros da elite letrada cabo-verdiana assumiam a morna como um elemento cultural importante, pelo qual estavam dispostos a confrontar a arrogância do regente, proveniente da metrópole, que depreciava a expressão musical da colónia. Ver Documentos sobre a morna.

A maioria dos autores dá como sendo a Ilha da Boa Vista o local de origem da morna, embora não haja informações concretas sobre o surgimento dos primeiros compositores desta ilha, povoada a partir de finais do século XVI. Do início do século XVIII a meados do século XIX, a Boa Vista viveu um momento de apogeu económico, baseado no comércio do sal, que navios de diferentes origens iam aí adquirir. Nesse período, foi sede do governo (1842) e também proposta para ser a capital da colónia. Supõe-se que a dinâmica económica e social desta época poderia favorecer o aparecimento de fenómenos culturais relevantes.

Na sua primeira fase, a morna tinha como características, segundo os seus estudiosos, um andamento mais rápido do que o atual e letras menos melancólicas e sentimentais. Pelo contrário, eram letras de humor satírico, tendo como temas acontecimentos do quotidiano. É a partir do final do século XIX que, na ilha Brava, o poeta e compositor Eugénio Tavares (1861-1930), às cordas de uma guitarra portuguesa, lhe confere um extremo lirismo, fixando os seus temas em torno do amor, da idealização da mulher, das separações e da saudade. A Ilha Brava, terra de migrantes que se aventuram no mar rumo ao continente americano, era terreno fértil para essa temática.  

A partir de meados dos anos 1920, com B.Léza (Francisco Xavier da Cruz, 1905-1958), a morna recebe uma outra alteração importante. Neste caso, não no que se refere às letras, mas sim ao aspeto harmónico. Influenciado pela maneira de tocar o violão dos brasileiros que passavam por São Vicente a bordo de navios, B.Léza inovou na construção de acordes e também quanto à sequência de acordes, estabelecendo um dos elementos característicos da morna a partir daí, o que lhe confere uma certa dramaticidade. É frequente dizer-se que B.Léza “introduziu o meio-tom na morna”, mas o meio-tom é identificável em composições anteriores, como por exemplo “Força di Cretcheu”, de Eugénio Tavares.

Em 1932, foi publicada Mornas, Cantigas Crioulas, coletânea póstuma de composições de Eugénio Tavares (reeditada em 1969). O que Tavares afirma no prefácio desta obra, intitulado “A Morna e o povo de Cabo Verde”, é a base daquilo que até hoje se considera válido sobre a história da morna, como o seu surgimento na Boavista, passando depois para as outras ilhas. Por sua vez, B.Léza publicou em 1933 a sua própria compilação de mornas: Uma Partícula da Lira Cabo-Verdiana. Também aqui há um prefácio, “Interpretação da canção Caboverdeana”, em que o compositor tece considerações sobre a morna e o seu papel no contexto cultural cabo-verdiano.

No período colonial, a morna era considerada a única expressão musical representativa de Cabo Verde, em detrimento de outras que eram desvalorizadas, como o batuku e o funaná. Pode-se, por esta razão, apontar a sua instrumentalização pelo poder colonial. Contudo, também é verdade que durante a luta de libertação ela transmitiu mensagens dos que lutavam pela independência da Guiné e de Cabo Verde, como evidenciam letras de composições de Abílio Duarte, Luís Fonseca ou Waldemar Lopes da Silva, por exemplo.  

O nome da morna

As várias hipóteses para a origem do termo “morna”:

  • Derivação do termo português morno;
  • To mourn, “lamentar” em inglês;
  • Outro autor indica as chansons de mornes, da Martinica, em que morne seria um aglomerado populacional;
  • Morne em francês é também “sombrio, triste, melancólico”.

Personagens relacionados com a morna

José Bernardo Alfama, Eugénio Tavares, José Medina, Eduíno Nunes, Wilson Nunes, Rodrigo Peres, João José Nunes e B.Léza são alguns dos nomes cuja produção como compositores de morna situa-se na primeira metade do século XX. Numa segunda fase, Manuel d´Novas, Lela de Maninha, Olavo Bilac, Jotamonte, Ano Nobo, Abílio Duarte e Djedjinho, estão entre os principais nomes neste domínio. Numa geração mais recente, destacam-se Betú, Nhelas Spencer, Tito Paris, Toy Vieira e Luís Lima (autor de letras em parceria com músicos como Paulino Vieira, Vaiss, Ramiro Mendes), entre outros.

Quanto aos principais intérpretes, refira-se Bana, com vasta discografia; Fernando Quejas, pioneiro na divulgação da morna em Portugal; Ildo Lobo, como vocalista d´Os Tubarões ou em carreira solo. Entre as vozes femininas, destaque para a mundialmente célebre Cesária Évora; a voz gutural e peculiar de Hermínia; e ainda: Titina, Gardénia Benrós, Ana Firmino, Maria Alice, Celina Pereira, Nancy Vieira, Lura, Solange Cesarovna. Entre os novos talentos que estão a emergir, destaque para Cremilda Medina e Lucibela.

Para saber mais sobre a morna

Vários autores já se debruçaram sobre o tema da morna, do ponto de vista histórico, musicológico, antropológico, literário, tendo como foco diferentes aspetos. Entre eles, contam-se Vasco Martins, Gabriel Moacyr Rodrigues, António Germano Lima, Barbara Ann Masters Rehm, Juliana Braz Dias, Geni Mendes de Brito, entre outros. Para as referências completas, ver Bibliografia.

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