Cabo-verdianos nos EUA e as suas atividades musicais

Por GN em

Cabo Verdean Ultramarine Band Club, 1990. Foto de Marzio Marzot cedida pelo autor

Por Gláucia Nogueira *

É só a partir do século XIX que existem referências escritas sobre a migração de cabo-verdianos para os Estados Unidos da América (EUA), mas supõe-se que esse fluxo começou já no século XVIII. Na época, navios baleeiros a operar no Oceano Atlântico buscavam trabalhadores, e foram muitos os cabo-verdianos e açorianos que aproveitaram a oportunidade de trabalhar nessas embarcações e, posteriormente, fixar-se nos EUA, o que deu origem às comunidades com origem nos Açores e em Cabo Verde que existem hoje na região da Nova Inglaterra (Maine, Vermont, Nova Hampshire, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island).  

Mais tarde, na virada do século XIX para o XX, os cabo-verdianos  preencheram a necessidade de mão-de-obra na indústria têxtil e na agricultura, o que levou a um fluxo constante de migrantes para essa região até 1924, quando o governo promulgou leis que restringiam a imigração de pessoas provenientes de territórios não europeus.

A partir do final do século XIX, com a chegada do navio a vapor e o declínio da indústria baleeira, os veleiros tornaram-se obsoletos e ficaram disponíveis a baixo preço, o que permitiu a alguns cabo-verdianos comprar embarcações e convertê-las em navios de carga e de passageiros. Estes passaram a circular regularmente entre Cabo Verde e os portos de New Bedford, em Massachusetts, e Providence, em Rhode Island.

Do ponto de vista musical, esta comunidade constituída sobretudo por pessoas das ilhas da Brava e do Fogo vai ter um papel importante.

É no contexto de uma comunidade estabelecida havia já quase um século na região da Nova Inglaterra que surgem, com alguma visibilidade, diversos grupos musicais formados por cabo-verdianos e seus descendentes. Ron Barboza, na sua obra A Salute to the Cape Verdean Musicians and their Music (1989), dá conta dessas atividades musicais.

Cape Verdean Ultramarine Band Club foi um dos pioneiros. Surgiu em New Bedford, em 1917. Até então, as atividades musicais eram simplesmente informais e de âmbito doméstico. Os grupos que então surgiram baseavam-se nos instrumentos de sopro e tinham um repertório de marchas militares. Mais tarde, a partir de 1930, a Skyliners Big Band veio a ser a secção de música de dança da Cape Verdean Ultramarine Band Club.

Outras bandas desta época são a B-29 Band; a Duke Oliver’s Orchestra; The Don Verdi Orchestra; e a Skyliners. Segundo Barbara Masters, a investigadora sobre a música cabo-verdiana no contexto dos EUA, orquestras como a Duke Oliver’s, The Don Verdi Orchestra, Skyliners e o grupo de Jimmy Lomba eram formados por jovens músicos que cresceram nos EUA e conheciam pouco de Cabo Verde. Apreciavam a música norte-americana em voga na época – Glenn Miller, Duke Ellington, Louis Armstrong, entre outros – e tocavam como as populares big bands que animavam os espaços de dança. Mas havia também os que mantinham a prática das músicas de dança tradicionais do arquipélago, refere a autora.  

Joli Gonsalves. Imagem do Massachusetts Hall of Black Achievement. Bridgewater State University.

Segundo Joli Gonsalves (ele próprio uma figura de destaque nesse meio), o grupo Duke Oliver’s Creole Vagabonds (mais tarde Duke Oliver’s Orchestra) incluiu no seu repertório temas cabo-verdianos com interpretações inovadoras, a partir de arranjos de músicos como Raymond “Ray” Lomba, Álvaro Duarte e outros. A partir desse período, refere o músico, no texto publicado em A Salute to the Cape Verdean Musicians and their Music, outros grupos passaram a incluir temas cabo-verdianos no repertório. Este facto mostra a integração dos descendentes de cabo-verdianos no universo musical norte-americano e ao mesmo tempo a recriação, a partir dessa vivência nos EUA, das músicas levadas de Cabo Verde pelos seus ascendentes.

Masters refere que a música de dança foi de longe o mais importante conjunto de formas musicais levadas do arquipélago para os EUA e afirma que as mais tocadas, além das mornas, eram “as músicas europeias das ilhas” (mazurca, valsa, contradança, polca e schottische) e, em períodos posteriores, a coladeira.

Os pioneiros na discografia cabo-verdiana

Entre 1929 e 1935, três grupos formados por cabo-verdianos realizaram um conjunto de 40 gravações nos estúdios da editora Columbia, em Nova Iorque São eles: Abrew’s Portuguese Instrumental Trio, Johnny Perry’s Portuguese Criolo Trio (que assume também as denominações Johnny Perry’s Capeverdean Serenaders e Johnny Perry’s Instrumental Trio) e a Orchestra de Notias. Foram provavelmente os primeiros cabo-verdianos a marcar presença na era da música gravada, e os seus discos de gramofone são hoje raridades de colecionadores. Gravaram mornas, polcas, valsas e mazurcas.

Os três grupos referidos compõem a parte cabo-verdiana da compilação Portuguese String Music, organizada por Richard Spottswood, que traz também gravações com grupos de Portugal continental e das suas ilhas e brasileiros. Estas gravações chegaram a Cabo Verde. Certamente que nas casas mais abastadas, onde havia um gramofone, esses discos foram ouvidos, mas também por aqueles que, não possuindo o equipamento, reuniam-se nessas casas para ouvir as músicas novas que chegavam, em discos importados pelos comerciantes ou pela mão dos emigrantes em férias. Tal facto mostra que os grupos e artistas da comunidade cabo-verdiana nos EUA terão tido um papel importante na introdução no arquipélago de expressões musicais como a polca, a valsa, o fox trot e outros géneros. E também na introdução de mornas tocadas já com influências do universo musical eclético e inovador em que eles estavam inseridos nos EUA.

Grupo cabo-verdiano atua durante visita do presidente de Cabo Verde Aristides Pereira à comunidade cabo-verdiana em Massachussets. No centro, Vickie Vierra. Fonte: Arquivo Voz di Povo

Destacam-se também no contexto das atividades musicais que se verificaram ao longo do século XX na comunidade cabo-verdiana na região de Massachussets e no seu entorno, os irmãos Vickie Vierra e Flash Tavares, este último pai dos membros do grupo Tavares Brothers, que se tornaram mundialmente famosos em finais da década de 1970, no período de apogeu da música disco.

Para além da comunidade

Alguns dos músicos de origem cabo-verdiana residentes nos EUA tornaram-se profissionais e tiveram atuação muito para além dos limites da comunidade cabo-verdiana, ligando-se ao universo do jazz ou da música popular, caso de Horace Silver (1928-2014), Paul Gonsalves (1920-1974), Paul Pena, Tavares Brothers, entre outros.

E em áreas como a música erudita e o ensino os descendentes de cabo-verdianos estão também representados, casos do baterista Jackie Santos, docente na Berklee University, e do pianista Henry J. Santos (1927-2020), professor emérito na Bridgewater State University.

Atualidade

Na segunda metade do século XX, sobretudo a partir da independência de Cabo Verde, provavelmente devido aos receios sobre como seria a realidade no novo país, um novo fluxo de cabo-verdianos vai somar-se à comunidade na qual várias gerações já tinham nascido no território norte-americano.

É assim que chegam aos EUA e começam a produzir os seus trabalhos a partir da década de 1970 nomes como Norberto Tavares, Quirino do Canto, Djosinha, Vuca Pinheiro, Rui Pina, entre outros. Grupos como Tropical Power, Ecos de Cabo Verde e Matchona vão surgir nesse contexto. Com o tempo, surge uma nova geração de artistas descendentes de cabo-verdianos – como Candida Rose, Noah Andrade, Desire Fernandes – com forte ligação às suas raízes culturais. Ao mesmo tempo, o fluxo de migração de Cabo Verde para os EUA não cessa, e dentro dele chegam também novos artistas. Kim Alves, Zerui de Pina, Duka, Calu di Guida, Assol Garcia são alguns exemplos. Esse conjunto compõe a atual comunidade musical cabo-verdiana na região da Nova Inglaterra, com alguns deles a regressar à terra natal, e outros a chegar. O fluxo de mão dupla não para entre os EUA e Cabo Verde.

Músicos cabo-verdianos no Hawai

Num outro contexto, há também a referir a presença de cabo-verdianos radicados no Hawai, no século XIX, e com atividades musicais que ficaram registadas na imprensa local. Estamos a pesquisar para, em breve, esta parte da história ser também contada aqui.

Para saber mais

A Salute to the Cape Verdean Musicians and Their Music, de Ron Barboza, 1989.

Personagens da comunidade musical cabo-verdiana nos EUA

(lista não exaustiva, sendo atualizada gradualmente)

Primeira metade do século XX: Abrew´s Portuguese Instrumental Trio; Al Lopes; Augusto Abreu; B-29; Boboi di Tai; Cape Verdean Ultramarine Band Club; Don Verdi Orchestra; Duke Oliver’s Creole Vagabonds; Flash Tavares; Frank Monteiro; George Azevedo; Horace Silver; Jimmy Lomba; Joe Livramento; Johnny Perry´s Portuguese Criolo Trio; Joli Gonçalves; Orchestra de Notias; Paul Gonsalves; Phill Barboza; Skyliners Big Band; Vickie Vierra; Young Boboy.

Descendentes de cabo-verdianos / A partir da segunda metade do século XX: Alexio Barboza; Anika Noni Rose; Anna Lopes; Belinda; Candida Rose; Creole Sextet; Desiree Fernandes; Jackie Santos; Lisa Lopes; Michael “Tunes” Antunes; Margo Sylvia; Mark G.; Noah Andrade; Paul Pena; Tavares Brothers; The Tune Weavers, The Verdatones.

Cabo-verdianos que se fixaram nos EUA e grupos que formaram : Afrika Rainbow; Amândio Cabral; Armando de Pina; Assa; Assol Garcia; Nho Balta; Nho Becha; Bela Mendes; Calú Bana; Calú d´Arquitecto; Calu di Guida; Carlos P. Mendes; Chachi Carvalho; Chandinho Dedé; CV Band; Dabeto Gonçalves; Dick d´Ano Nobo; Djédjé; Djedjinho; Djicai; Djim Djob; Djinho Barbosa; Djô d´Eloy; Djosinha; Djuta Barros; Djuta Duarte; Duducha; Ecos de Cabo Verde; Feel Bass; Fidjos Codé di Dona; Fil G; Frank de Pina; Fuca; Gardénia Benrós; Gau Salgado; Glanzer Ramos; Gutty Duarte; Ice Band; Ivo Pires; Jack Darosa; Jack Pina; Jamm Band; João Alfredo (Féfe); João Cerilo; João Lichinho; João Mendes; Jorge Gorila; Jorge Job; Jorge Sena; José Laço; José Silva; Kalú Monteiro; Keita; Kim Alves; Kola Band; Kreation; Lena Timas; Lil John; Linkim; Lutchinha; Matchona; Maria de Barros; Maria da Luz; Mário de Melo; Maruka Tavares; Mendes Brothers; Mo Green; Nando Lopes; Neves; Nhela Sax; Norberto Tavares; Oasis; Paley Spencer; Os Pecos Band; Pepe Bana; Pulonga´l Bita; Punga; Quirino do Canto; Ramiro Mendes; Roy Job; Rui Pina; Santos Spencer; Sãozinha; Tazinho; Tchuny Preta; Tony Marques da Silva; Tony Oscar; Totó Tavares; La Tour; Toy Pinto; Tropical Power; Tuká; Uprising; Vuca Pinheiro; Wings (New Bedford); Zé di Monza; Zé Galvão; Zé Timas; Zerui Depina.

Ver e ouvir

Referências:

Barboza, Ronald (1989). A Salute to the Cape Verdean Musicians and their Music. New Bedford: Documentation and Computerization of the Cape Verdeans.

Masters, Barbara (1989), “Brief History of Cape Verdean Music in New Bedford”. Em Ronald Barboza, A Salute to the Cape Verdean Musicians …

Gonsalves, John Gonsalves, John (1989). Trends in the capeverdean music. Em Ronald Barboza, A Salute to the Cape Verdean Musicians …

Nogueira, Gláucia (2016). Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens. Lisboa: Campo da Comunicação.

Nogueira, Gláucia (2020). Músicas e Danças Europeias do século XIX em Cabo Verde. Percurso de uma Apropriação. Tese de doutoramento, Universidade de Coimbra.

Spottswood, Richard K. (1990). Ethnic music on records: A discography of ethnic recordings produced in the United States, 1893 to 1942 (Vol. 4). Urbana, Chicago: University of Illinois Press.

* Adaptação de um capítulo da tese Músicas e Danças Europeias do século XIX em Cabo Verde. Percurso de uma Apropriação (2020).

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