Sérgio Frusoni

Por GN em

Sérgio Frusoni no seu posto de trabalho na Italcable, déc. 50. Foto cedida por Franco Frusoni

Sérgio Frusoni

Mindelo, São Vicente, 1901 – Lisboa, Portugal, 1975

Compositor, poeta

Sérgio Frusoni é um daqueles casos em que, com uma única composição, o seu autor entra para a história. “Tempo de canequinha”, que se tornou um clássico e é um retrato do Mindelo do início do século XX, é o tema que o põe na história da música de Cabo Verde.

“Elogio fúnebre para uma época que se esfumou no tempo”, escreveu Francisco Lopes da Silva (Notícias, 08.05.1991) sobre a composição. Esta morna foi produzida como adaptação de um poema do próprio Frusoni, Sanvcente já cabá na nada”, para um espetáculo de angariação de fundos para o clube Castilho.

Franco Frusoni, filho do compositor, foi o primeiro a interpretá-la, com orquestração de Morgadinho, no espetáculo intitulado Clandestinos no céu, apresentado pelo Grupo Cénico Castilho em 1954. A estreia foi na sede do clube (três sessões) e a reprise (duas sessões) no Cinema Eden Park, como informam Morgadinho e Valdemar Pereira (email, março 2022), dois personagens que viveram esse momento. No seu livro O teatro é uma paixão, a vida é uma emoção, Pereira reproduz a letra da composição.

Letra de “Temp de Canequinha”, reproduzida no livro O Teatro é uma Paixão, a Vida uma Emoção, de Valdemar Pereira

Vivia-se em Cabo Verde na época o drama de migração para São Tomé, o que torna os seus versos um apontamento crítico incisivo, ao evocarem o tempo passado de abastança vivido pela cidade em função do Porto Grande, antes da decadência então vivida. Com vários registos ao longo do tempo, esta é uma daquelas composições que permanecem na ponta da língua dos cabo-verdianos. Tem sido ao mesmo tempo objeto de alguma controvérsia, já que houve intérpretes que alteraram a letra original, o que em alguns casos levou a novos sentidos de determinados versos.

O próprio título oscila entre “Tempo de Canequinha” – título correto, segundo Franco Frusoni – e “Um vez Soncente era sabe”, verso inicial da composição, que é indicado como título em várias capas de discos.

Um esclarecimento que o filho do compositor publicou (A Semana, 08.11.1991) revela, entre outros aspectos, que, onde alguns intérpretes dizem “porta”, o autor referia-se ao porte (Porto Grande). Outro verso que traz controvérsia é “hoje é tempo de canequinha”. Segundo Franco Frusoni, o correto é “era tempo de canequinha”.

Contudo, a publicação da letra da morna na Miscelânia Luso-Africana, publicada pela Junta de Investigação do Ultramar em 1975, fixa o verso assim: “Hôje… ê temp d’Canequinha…”. Resta saber se a recolha foi feita junto ao próprio compositor ou se a partir de interpretações de pessoas que cantavam a morna.

Algum tempo depois do espetáculo acima referido, um segundo traz nova intervenção do compositor, que tocava piano de ouvido. Criou, sobre a melodia do tema tradicional “Manchê”, um quadro folclórico intitulado Cuscusada (com o subtítulo “Coladêra do milho”), cuja letra dúbia jogava com alguma malícia e escandalizou senhoras da sociedade mindelense, que acusaram a peça de pornográfica, devido ao trecho “Dixam m´po nha pau também…” Mas o pau a que se referia a letra era o do pilão, para cuchir o milho, esclarece Franco Frusoni (Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens).

Outra composição da autoria de Sérgio Frusoni não chegou a se tornar conhecida: a morna “Ó Maria Hortensa”, que o filho refere e consta de uma lista de obras suas citada por Luís Romano no Novo Jornal de Cabo Verde (19.06.1975).

Música à parte, o poeta Sérgio Frusoni é personagem da literatura, como um autor importante quando se fala em escrita na língua cabo-verdiana. Manuel Ferreira, que em 1969 aponta essa preferência como algo que o “distingue de todos os modernos poetas cabo-verdianos”, questiona o poeta, em entrevista, sobre que futuro via para o “dialeto” na literatura de Cabo Verde. “Dependerá do grau de fobia dos seus detratores, incapazes de prescindirem do galardão da projeção cá fora, e da persistência dos seus cultores em contrapor-se-lhes”, respondeu Frusoni (A Capital, 21.05.1969).

Por sua vez, Luís Romano, num texto publicado pouco tempo após a morte do poeta e compositor, refere que quando se iniciarem pesquisas “sobre as principais bases divulgadoras da língua cabo-verdiana, há-de se fazer justiça a esse pioneiro”, “precocemente visionário” (Novo Jornal de Cabo Verde, 19.06.1975).

A sua produção literária encontra-se dispersa e parte dela – cerca de cem poemas – foi reunida pelo antropólogo Augusto Mesquitela Lima em A Poética de Sérgio Frusoni: uma leitura antropológica. Esta obra é editada não como coletânea dos poemas de Sérgio Frusoni, que efectivamente é, mas como trabalho da autoria do organizador, que acresce aos poemas uma introdução, uma nota biográfica e notas de rodapé que, ainda que esclarecedoras de aspectos do quotidiano mindelense, dificilmente justificam substituir o nome do autor dos textos que dão origem ao livro pelo do autor das notas e introdução.

Assim, o único livro em que Sérgio Frusoni aparece como autor é Vangêle contódnôs moda, tradução livre de Er Vangelo Secondo Noantri, de Bartolomeo Rossetti (o Novo Testamento em versos, em dialeto romano). Ainda como tradutor, aparece na revista Presença Crioula (Abril 1973) com a tradução para crioulo do poema If do poeta inglês nascido na Índia Rudyard Kipling (1865-1936).

Sérgio Frusoni (à direita), com Jorge Pedro Barbosa e Franco Frusoni no centro. Foto cedida por Franco Frusoni

Vertente muito marcante na sua produção, por outro lado, é a das suas crónicas radiofónicas, “Mosaico Mindense”, de finais dos anos 1950. Frusoni apresentava-as na Rádio Barlavento, fazendo juntar grupos de pessoas à volta dos altifalantes colocados na praça em frente à rádio, na hora da emissão. Autor, produtor, realizador e apresentador, como salienta Francisco Lopes da Silva (Notícias, 08.05.1991) no seu artigo a recordá-lo, punha o seu humor afiado a satirizar veladamente figuras da cidade, autoridades, situações sociais e políticas – na mesma linha do que fazia o seu amigo Nho Djunga (João Cleofas Martins) – e criando personagens que ficaram na história do Mindelo.

Consta que tenha sido chamado pela PIDE para prestar depoimento, em determinados momentos na sequência de queixas de pessoas que se sentiram retratadas nas suas caricaturas radiofónicas. Escreveu também em português, e um exemplo dessa vertente foi publicado em 1932 em Alma Arsinária, revista literária editada por um grupo de alunos do liceu de São Vicente. É um poema dedicado ao seu amigo pianista e maestro, José Alves dos Reis.  

“Poeta do povo”, escrevia em 1975 Luís Romano, “modesto, simples como um verdadeiro cristão, insuficientemente valorizado, entretanto manteve-se confiante, a vida inteira, na sua Mensagem Documentativa em que transsuma (sic) seu devotado amor ao ambiente ilhéu de que conheceu os mínimos detalhes, qual um dissecador sentimental ao mesmo tempo realista” (Novo Jornal de Cabo Verde, 19.06.1975). Pela sua versatilidade, poderia hoje em dia ser chamado multimedia.

 “O trovador que, juntamente com B.Léza e Jorge Monteiro, melhor soube cantar a ilha de São Vicente e o seu povo.”

Francisco Lopes da Silva, no artigo “Lembrando Sérgio Frusoni”, em Notícias, 08.05.1991

E o curioso é que esse expoente da cabo-verdianidade, na sua especificidade regional e na afirmação identitária através da língua, era italiano. E nunca deixou de ter essa nacionalidade. Descendente de duas famílias que desde o século XIX encontravam-se ligadas a São Vicente – a da mãe, Bonucci, ligada à extração de coral; Frusoni, comerciante que visitava Cabo Verde para comprar esse produto utilizado na joalharia –, o compositor teve ao longo da vida idas e vindas entre as duas pátrias.

Ainda adolescente, foi para a Itália estudar (o liceu de São Vicente só seria criado em 1917), mais tarde para o serviço militar (1922), tendo-se casado nesse país em 1924. Depois de alguns anos em Cabo Verde, regressou à Itália em meados dos anos 1930, transferido pela Italcable, empresa da área das comunicações transatlânticas, onde exercia as funções de telegrafista (antes fora funcionário da empresa inglesa congénere, a Western Tellegraph). Passou quase quinze anos na Itália, período em que foi integrado no exército de Mussolini, em plena II Guerra Mundial, acabando por ser feito prisioneiro, tal como o filho Franco. Após o fim do conflito, a família regressou a São Vicente, em 1947. Nesta altura, dedicou-se ao comércio até regressar à Italcable, quando esta reiniciou as suas actividades, interrompidas temporariamente.

Depois de se reformar, na década de 1960, Sérgio Frusoni passou a dedicar-se à pintura, e foi nessa altura que produziu o Vangêle Contód d´nôs Moda. A arte é algo presente na sua vida desde muito cedo. A primeira vez que o seu nome aparece na imprensa é aos 12 anos, quando recebeu muitos elogios no jornal A Voz de Cabo Verde (25.08.1913) pela participação numa récita, tendo a sua atuação sido “delirantemente ovacionada pela assistência”. Várias outras alusões às suas atuações como cantor aparecem na imprensa local (A Voz e O Futuro de Cabo Verde) entre 1913 e 1914. Encontrava-se a viver em Portugal quando faleceu, cerca de um mês antes da independência de Cabo Verde, lamentando não regressar à terra.

Composições

Tempo de canequinha/Um vez Soncente era sabe; Ó Maria Hortensa”

Obras publicadas

  • Vangêle contód d´nôs moda, tradução livre de Er Vangelo Secondo Noantri, de Bartolomeo Rossetti (texto em versos do Novo Testamento em dialecto romano). Terra Nova, São Vicente, 1979.
  • A poética de Sérgio Frusoni: uma leitura antropológica. Poesia, em cabo-verdiano, com tradução para português. Org. e notas Mesquitela Lima. ICLP/ICLD, Lisboa/Praia, 1992.
  • Figura na “Pequena amostra de poesia cabo-verdiana”, em Garcia de Orta – Revista da Junta de Investigação do Ultramar, 1961.
  • Figura na antologia No reino de Caliban, org. Manuel Ferreira, 1975.
  • “Textos crioulos cabo-verdianos/Sérgio Frusoni” (pref. e trad. Marius F. Valkhoff), na Miscelânea luso-africana : colectânea de estudos (Marius F. Valkhoff). Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975, p. 165-204.
  • Colaboração dispersa em Claridade, Mocidade Africana, Presença Crioula, Alma Arsinária, Almanaque Bertrand.

Ver e ouvir

Contribuíram para produção desta página: Valdemar Pereira, Morgadinho, Manuel Brito-Semedo.

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