Norberto Tavares 

Por D O em

Norberto Tavares. Foto cedida por Totó Tavares

Norberto dos Santos Tavares

Assomada, Santiago, 1956 – New Bedford, EUA, 2010

Multiinstrumentista, cantor, compositor

Considerado uma referência para artistas de diferentes gerações, Norberto Tavares fica na história da música de Cabo Verde como um precursor do movimento musical que no início dos anos 1980 tirou o funaná dos limites da ruralidade para lançá-lo como género musical a ser fruído por todos os cabo-verdianos. No seu LP Volta pa fonti, lançado um ano antes do primeiro disco do Bulimundo, aparece o funaná numa versão modernizada – “Mariazinha leban bu palavra” –, exatamente o que irá determinar o sucesso deste grupo. É o próprio Katchás, líder do Bulimundo, que reconhece a precedência do trabalho de Tavares: “Se tivesse tido a convicção de fazer o primeiro disco da história do funaná, o inesquecível Norberto Tavares tê-lo dia realizado”, refere Katchás ao jornal Tribuna (dezembro 1986).

Quatro anos antes de Volta pa fonti, entrara pela primeira vez num estúdio, em Lisboa, para gravar o primeiro disco do grupo Black Power. Era o ano de 1975, Norberto Tavares tinha 19 anos e havia chegado à capital portuguesa cerca de três anos antes, com a intenção de estudar. Um grupo de jovens cabo-verdianos procurava um organista e ele foi o escolhido. Com esse grupo, gravou três LP: Black Power – Vol.1 (1976); Nos Cabo Verde di Sperança (1977), título que é também o de uma composição da sua autoria que fez grande sucesso na época e é referenciada como um autêntico hino às ilhas e ao povo cabo-verdiano; e Black Power is Back (1978) que exalta a idiossincrasia africana. O grupo dura até 1979, ano em que o jovem de Assomada grava o seu primeiro álbum a solo, Volta pa fonti.

“Sempre quis fazer um trabalho com as ideias que tinha, com a música de Cabo Verde, ou melhor, de Santiago. Mas, no grupo, isso não foi possível, porque a maior parte dos elementos não percebia as minhas razões, ao querer gravar coisas como o funaná e o batuku. Então, quando o conjunto acabou, fui para o estúdio fazer aquilo sozinho, toquei praticamente todos os instrumentos.”

Norberto Tavares, sobre o disco Volta pa Fonti, em Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens

Outros nomes que aparecem, como participações especiais, são Teck no sax tenor, Manuel Teixeira na bateria e uma voz feminina no coro, Maria Isabel Vicente. “Ao gravar o primeiro disco do Black Power, eu tinha a ideia de introduzir o funaná, mas os elementos não perceberam a ideia. Metade era da Praia, metade era de São Vicente. Mas consegui introduzir batuku, “Mininos teni fomi”, nesse primeiro álbum, Black Power vol. 1(Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens). Essa terá sido provavelmente a primeira gravação em disco de um tema com o ritmo do batuku.

A seguir à saída do disco, Tavares parte para os EUA, onde fica a residir até ao fim da sua vida. Com o irmão António (Totó Tavares), que também participara do Black Power, logo funda um novo grupo, com o qual pretendia dar continuidade ao trabalho que faziam em Portugal. Não ficaram com o nome porque não tinha sido sua a ideia e, por outro lado, a expressão black power era associada ao movimento negro nos EUA. “Então decidimos continuar com o power mas colocar tropical no lugar de black”, lê-se no seu verbete no dicionário de personagens citado.

Sob a sua liderança, o Tropical Power gravou Mundo stá di Boita (1982) e Tropical Power Musical Conection (1985). O grupo dura, de forma continuada, até 1986. A partir daí, tem várias interrupções e depois passa a reunir-se só eventualmente. Tavares continua gravando a solo: Jornada di um Badiu (1989), Hino di Unificação (1991), Maria (1998) e um Best Of (2005) que junta antigos sucessos e alguns temas inéditos. Dirigentes inconscientes (2001), com três temas, não chegou a ser distribuído comercialmente. Teve o objetivo de “alertar o povo para o que se passava na vida política”, declarou Norberto Tavares, frisando: “Não sou um político mas acho que, se Deus me permite ver coisas que o público não está vendo, é minha obrigação fazer um alerta (…) O que lamento é que a maioria dos artistas acha que não deve interferir na política porque vão ter travões no caminho se fizerem isso” (Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens).

Norberto Tavares. Imagem exposta no Centro Cultural Noberto Tavares

Letras críticas foram uma constante na carreira de Norberto Tavares, algumas vezes gerando mal-entendidos. No primeiro disco do Black Power, no auge da euforia da independência, aparecem “No crê liberdade” e “PAIGC qui tá branda nhôs”. Esta música, segundo o compositor, foi mal compreendida. “Pensavam que eu estava a dizer que o PAIGC era um partido duro, carrasco, mas não é nada disso, eu estava a dizer que era um partido que podia dar força à ordem e à lei. Outro exemplo foi “Boita di mundo”, do primeiro disco do Tropical Power, em 1982. “Falei de muita coisa nessa música e pensaram que eu estava a referir-me ao partido no poder. Eu estava, simplesmente, a falar de mudança, de coisas que acontecem no mundo. Alguma coisa que eu falava no geral também se aplicava ao governo de Cabo Verde. Mas não foi uma coisa dirigida diretamente ao governo” (Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens). A propósito, o LP Jornada di um Badio, de 1989, traz na capa a seguinte advertência: “A música ‘Na nha juiz ê mi que ta manda’ não está criticando particularmente nenhum governo ou regime local mas sim retrata num modo global o estado sociopolítico atual do planeta”.

No ano seguinte, ao realizar espetáculos na Praia, o artista foi acusado de “transformar sessões de música e divertimento em verdadeiros comícios e a pretexto de explicar as suas composições, enredar-se na provocação política barata e em atitudes populistas”, lê-se no Voz di Povo (09.06.1990). Era o período da mudança para multipartidarismo, quando as suscetibilidades se encontravam ultra aguçadas. E se Tavares rejeita qualquer simpatia partidária, a imprensa atribuiu-lhe a certa altura “papel muito influente no processo de mudança política então a favor do MpD”, mas ao mesmo tempo refere que o músico “regressa 10 anos depois para combater esse mesmo partido que segundo ele criou em Cabo Verde ‘uma dinastia mascarada de democracia’” (www.visaonline.com, 12.01.2001).

Norberto Tavares terá composto cerca de 260 composições, das quais só uma pequena parte se encontra gravada. O facto de ter adoecido aos 24 anos – de diabetes, que só foi diagnosticada nove anos depois – afetou, significativamente, a sua produção: “Não sabia a razão, mas não pensava tão claramente quanto antes. Continuei a compor, a trabalhar na música, mas era uma coisa que exigia um esforço muito maior. Pode-se ver que há um espaço de vários anos de intervalo entre Mundo sta di boita (1982) e Jornada de um badio (1989)”. Este facto leva-o a começar a trabalhar para outros músicos, tocando, fazendo produção e arranjos e criando o seu próprio estúdio, a que chamou Mensagem.

“Tem de ser uma coisa que vem naturalmente, como se fosse uma mensagem que vem no ar e tenho de pôr para fora. Quando isso acontece, pego na viola ou no piano e, em 10, 15 minutos, a música já está feita”.

Norberto Tavares, sobre a sua forma de compor, em Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens

Sobre as suas composições, afirmava, em entrevista em 2005: “É incrível que as músicas que fiz entre os 12 e os 24 anos, até adoecer, lembro-me de todas elas, são mais de 200. Mas o que fiz depois disso, custa-me recordar. As melhores que tenho, considero que são as que compus entre os 12 e os 24. Há uma coisa curiosa, pois desde que comecei a compor, tão jovem, falava nas letras de assuntos com uma profundidade que me admira até hoje, coisas que não tinha aprendido com ninguém, nem em livros nem em nada.” (Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens).

Norberto Tavares cresceu a ouvir mornas e koladeras interpretadas nos vários instrumentos que o pai tocava. Mas só até os 9 anos, altura em que o pai faleceu. Portanto, não foi com ele que aprendeu, mas os sons que o seu ouvido guardara ressurgem-lhe na memória quando começa a praticar, sozinho. “Ouvia uma música na rádio e pensava: também posso fazer isso”, relatou. Ao mesmo tempo, desde menino sentia-se atraído quando via os camponeses chegarem à vila com a gaita ao peito para tocar no dia de Santa Catarina ou outras datas festivas. E foi em temporadas passadas na casa de um tio que vivia em Matinho-Boca Larga que teve contacto de perto com a música rural de Santiago e sentiu de perto “a alma do povo cabo-verdiano, a sua humildade, simplicidade e sinceridade… Tudo aquilo me deixou encantado” (Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens). Mais tarde, pede a permissão do padre para se exercitar no órgão da igreja e acaba por integrar um grupo de jovens da paróquia. Isso até emigrar para Lisboa em 1973, e enveredar a sério pela música.

Nos últimos anos de vida de Norberto Tavares, complicações no seu estado de saúde geraram uma onda de comoção e solidariedade em Cabo Verde e na emigração, tendo sido encontrado um doador que permitiu a realização de um transplante renal.

Aproximadamente pela mesma época foi realizado um documentário pela etnomusicóloga norte-americana Susan Hurley-Glowa sobre a carreira do artista: Journey of a Badiu: The story of Cape Verdean-American Musician Norberto Tavares (ver trechos abaixo)Em 2021, a mesma autora publicou o livro Songs for Cabo Verde: Norberto Tavares’s Musical Visions for a New Republic, sobre a obra do artista como uma lente para analisar a história recente do país. 

Em 2008, o governo de Cabo Verde transformou o Museu da Tabanka, no centro de Assomada, em Centro Cultural Norberto Tavares, local que acolheu as cerimónias fúnebres do artista, no final de dezembro de 2010. Na altura chamou-se a atenção para o aspeto espiritual na vivência do compositor (em alguma medida pelo facto de o seu irmão António ter-se convertido a uma confissão cristã protestante), mas é verdade que muito antes Tavares dizia-se, embora afastado da prática religiosa, profundamente crente. “E acredito que nós estamos neste mundo não por acaso, mas cada um de nós tem uma missão a cumprir” (Terra Nova, agosto 1990).

Composições

África do Sul, Burgonha di Século Vinte; Afrika Genesis; Alâ Mundo Ta Caba; Amor e Canga; Angola até Quando!?…; Angola Paraiso; Bu Bai; Bu Bulin Nha Fid Femia; Bu Sabura E Un Disgraça; C.V. Independente, Democrático; Ca Bu Negan; Co Amor di Deus no ta ama; Conkista Maria; Cren Sima N´Crebo; Cusé Nu Tem Qui Faze; Dança so cu Mi; Deus no ta ama; Djan ben Dja; E Pa Bu Passa Sabi; Eu Só Penso em Ti; Fazebu Feliz; Fiticera; Flor qui Cai na Tcheia; Forti Bu Dan Cu Stangu!; Hino di Unificaçon; Indiz di Terra; Ingratidão di Mundo; Ingratidon di Mundo; Investe na Terra; Jornada de um Badiu; Largan di Nha Sulada; Lembran nha Kutelo; Lena Morena; Let Me; Maria Incantada, Trabadjadera; Mariazinha Leban bu Palavra; Mininos Teni Fomi; Mundo Sabi era Mundo Antigo; Mundo Stá di Boita; N´sta Farto des Tchon; N´Ta Tchomabu Bu Ca Ta Cudim; Na Bó Marado; Ná Coraçon Ná; Na Nha Juiz E Mi que Ia Manda; Negro Dja Dia ta Sufri; Nôs Cabo Verde di Sperança; Nos E Simente Fecundo; Nos Profeta qui Mori; Nu Labanta Nu Mostra; Nu Serbi cu Quel que di Nós; Oh Boy; Oh, Cabo Verde!; Pâ Diante ê quê Caminho; PAIGC Qui Tâ Branda Nhôs; Rastaman will never die; Serenata na Strangero; Sodade de Matinho; Sodadi´l Maria; Soluçon; Soriso; Stop the world tonight; Supirinha; Symphony nº 0; Tchábi-Lan; Tchuba; Tchuba Tchobe; Você me Faz Mal; Você me Faz Mal; Volta pa Fonti.

Discografia

  • Volta pa fonti, LP, Do-La-Si/Electromovel, Lisboa, 1979.
  • Jornada di um badiu, CD, edição do artista, EUA, 1989.
  • Hino di unificação, CD, Lusafrica, Paris, 1991.
  • Maria, (?), (?), 1998.
  • Best Of, CD, (?), (?), 2005.
  • Participação na coletânea Funaná dance vol. 1, 1991, com os temas “Forti bu dan cu stango!” e “Nos e semente fecundo”, ambas do CD Jornada di um badiu.
  • Participação na coletânea Cap Vert: Anthologie 1959-1992, 1993, com o tema “Largan di nha sulada”, do LP Volta pa fonti.
  • Ver também discografia dos grupos Black Power Tropical Power.

Para saber mais

Songs for Cabo Verde: Norberto Tavares’s Musical Visions for a New Republic, de Susan Hurley-Glowa. Edição da autora, EUA, 2021.  

A Música como Veículo para a Descolonização da Mente no Cabo Verde Pós-Independência: o Caso das Composições de Norberto Tavares, de Luís Carlos Gonçalves. Pedro Cardoso Editora, Praia 2023.  

Ouvir

Colaboraram na pesquisa: Mário Silva; Djinho Barbosa

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