Ntóni Denti d’Oru, Nho

Por GN em

Ntóni Denti d’ Oru, em sua casa em São Domingos, 1998. Foto: Gláucia Nogueira

António Vaz Cabral

São Domingos, Santiago, 1926 – São Domingos, Santiago, 2018

Batukador, compositor de finason

Em 1974, quando vivia em Portugal a trabalhar numa fábrica de cimento, António Vaz Cabral teve de extrair vários dentes, que foram substituídos por próteses de ouro, habituais à época. Ao voltar para Cabo Verde, pois fazia questão de assistir à independência do seu país, recebe de imediato a alcunha Denti d’Oru, que guardou para sempre. Viveu a partir de então em São Domingos, onde teve o seu grupo de batukaderas cuja liderança exercia com rigor, na exigência de saia preta, blusa branca e o tradicional pano di terra (faixa de pano que as mulheres usam amarrada abaixo da cintura) – “Roupa de camponesa”, explica em Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens.

Ntóni Denti d’ Oru foi durante muito tempo um raro representante masculino do batuku e do finason, manifestações em que as mulheres sempre foram as protagonistas – até que uma nova geração, por volta do ano 2000, começasse a mudar este cenário. Mas além desse há outros aspetos que o tornam peculiar. Denti d’Oru usava um tambor para marcar o ritmo e fazia-se acompanhar por instrumentos de corda. Este modelo difere do padrão da maior parte dos grupos de batuku, que não usam (ou pelo menos não usaram durante muito tempo) nenhum instrumento além da peça de tecido presa entre as pernas, a acompanhar a voz solista.

Em 1998 saíram em CD, praticamente ao mesmo tempo, as primeiras gravações de Denti d’Oru: aparece em Dez Granzim di Terra, volume dedicado a Cabo Verde na coleção Viagem dos Sons, produzido pela editora Tradisom para a Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; e o CD Cap-Vert Batuque e Finaçon, lançado em França, resultante de gravações para um programa da rádio France Culture sobre estas duas tradições musicais da ilha de Santiago. Neste disco, o artista é acompanhado, além das batukaderas, por Mano Mendi, na sinboa, três guitarristas e um percussionista, no djembê.

Mais tarde, irá partilhar com Nácia Gomi o CD Finkadus na Raiz, com acompanhamento de Hernani Almeida (guitarra), Jorge Pimpa (bateria), Kim Bettencourt (cavaquinho), entre outrosmúsicos exteriores ao universo do batuku. Na mesma época, numa iniciativa do produtor deste álbum, Gugas Veiga, Denti d’Oru faz uma digressão por vários países europeus. Anteriormente tinha atuado na Expo Sevilha, ao lado de Nha Nácia Gomi.

Embora possa-se pensar que Denti d’Oru inove ao adotar esses instrumentos, há referências a eles na literatura do século XIX, como aponta, por exemplo, Francisco Travassos Valdez, na obra Africa Occidental – Notícias e Considerações (1864), ao descrever uma dança de escravas com “música de flautas, violas, rabecas e do tom-tom ou batuque, espécie de tambor que dá o nome à dança”. Por sua vez, a Revista de Estudos Livres (1887), ao descrever um casamento refere a viola: “Ao alvorecer, grupos de cantadeiras e bailarinas ao som da viola, terminam pelo estribilho…” Outro exemplo é o romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida (1989), que fala de uma sessão de batuku referindo “os sons pouco harmoniosos de três guitarras.”.

Denti d’Oru diz ter aprendido o batuku ainda criança, relembrando nomes como Chica Leal, Emília Borges e Xumpinha Mendi, esta última, mãe de Miranda Tavares, que foi o seu mestre. As cantigas – revela em Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens – aparecem à noite, em sonhos, e um gravador fazia-lhe falta para que no dia seguinte não estivessem já esquecidas.

Ntóni Denti d’ Oru e seu grupo de batukaderas num evento do Programa Alargado de Vacinação, do Ministério da Saúde, 1987. Fonte: Voz di Povo.

Batuku e finason estiveram sempre presentes nas festas familiares, principalmente os casamentos, e nestas ocasiões o solista do finason devia, num determinado momento da festa, dedicar à noiva um improviso que a fizesse chorar, assim como a toda a sua família. No caso de isso não acontecer, o significado era de que ela tinha coração duro e corria o risco de chorar durante toda a sua vida de casada. Esse é o mundo que Denti d’Oru viveu e retratou, do Santiago rural, dos camponeses que tentam mas nem sempre conseguem ser agricultores – “lavrador é quem tem água” – e transformam-se em pedreiros, operários das obras públicas e o que for possível para sobreviver, como ele fez desde que, com cerca de 10 anos, deixou a escola.

 Nos primeiros anos após a independência, período de valorização de manifestações culturais tradicionais e populares, Denti d’Oru levou o batuku para São Vicente, Santo Antão e Fogo, além de ter participado da inauguração do Palácio da Assembleia Nacional. Colaborou com a OMCV e entidades governamentais em atividades como campanhas de vacinação e de promoção do aleitamento materno, como regista o Voz di Povo em 21.02.1987 no texto intitulado “Saúde: traduzir o Plano em cultura popular”.

Em 2005, N’toni Denti d’Oru foi condecorado pelo governo de Cabo Verde com o primeiro grau da Medalha de Mérito e no ano seguinte pelo presidente da República com a primeira classe da Medalha do Vulcão.

Discografia

  • Cap-Vert Batuque et Finaçon, CD, Ocora Radio France, Paris, 1998.
  • Dez Granzim di Terra, CD, Tradisom, Lisboa, 1998 (comparece com uma faixa).
  • Finkadu na Raiz (com Nha Nácia Gomi), CD, AV Produções, 2005.
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