Pedro Cardoso

Por D O em

Pedro Cardoso, poeta, jornalista, compositor (Fonte: ANCV)

Pedro Monteiro Cardoso

São Lourenço, Fogo, 1883 – Praia, Santiago, 1942

Compositor, poeta, jornalista

Pedro Cardoso é um daqueles casos em que uma única composição põe o seu autor na história da música de Cabo Verde: “Nha codé”A letra é publicada em 1940, numa brochura intitulada Letras para a morna ‘Nha codé’. Nas gravações,nota-se um ritmo mais rápido que o padrão atual da morna – a coletânea Cap Vert: Anthologie 1959-1992 identifica a gravação de Fernando Quejas como “toada” e o grupo Raiz di Djarfogo refere-a como “coladeira”. Nho Djonzinho Montrond, por sua vez, apresenta-a numa versão mais “sambada”. Possivelmente, Pedro Cardoso aplicou os seus versos sobre música já existente, do que se depreende do título da brochura, algo que não era raro naqueles tempos, como se verá adiante para o caso de “Passarinha”. Por outro lado, o memorialista Miguel Alves refere, num texto no Voz di Povo (28.02.1987), que o autor da melodia seria um tocador de gaita de Mosteiros, chamado Baptista.

Outra incursão de Cardoso na área musical é o “Hino dos Falcões do Fogo”. Os Falcões foram uma associação juvenil existente nos anos 1930 em Cabo Verde, inspirada numa entidade da Checoslováquia denominada Sokols (significando “falcão” na língua desse país). Baseava as suas atividades no desporto e na educação moral e cívica e contemplava treinos paramilitares. É pouco conhecida a sua implantação em outros pontos do arquipélago, além de São Vicente, mas existiu na ilha do Fogo, como atestam os versos de Pedro Cardoso. O folheto com a letra foi impresso em Boston, sem data (Agnelo Vieira de Andrade, arquivo pessoal).

Por sua vez, o tema “Passarinha” (Passadinha, na grafia do poeta, e como é usual na ilha do Fogo) ou “Passarinha de pena azul” (ver a letra em Documentos sobre a Morna), muitas vezes associado ao nome de Pedro Cardoso, não é da sua autoria mas foi recolhido por ele, como comprova uma nota inserida após o poema “A morna”, que dedica a José Bernardo Alfama, em A Voz de Cabo Verde (04.05.1914). Pedro Cardoso (aqui sob o pseudónimo Afro, que utilizou em vários momentos), insere no poema os versos da canção explicando no fim que a reproduz tal qual ouviu a uma camponesa da sua terra, que a cantava com a melodia da música “Perdão Emília”. “Assim a arquivei no meu poemeto, onde – ciclo contemporâneo – outros espécimes do folklore cabo-verdiano se reproduzem”, escreveu. Contudo, é na melodia de outra morna, “Maria Adelaide”que os versos a falar da “passarinha” se perpetuaram – as gravações de Teté Alhinho (Sentires, 1999) e de Jack Pina (Por amor, 2007) vêm com esse título, tal como as versões instrumentais de Travadinha (gravada ao vivo no Hot Club, Lisboa, em 1982, editada em 1999) e Chico Serra (no seu LP de 1983). Vasco Martins, em Memórias atlânticas (1992), indica os dois títulos. Possivelmente, ao ultrapassar os limites da ilha do Fogo, os versos passaram a ser cantados na outra melodia – “Maria Adelaide” é apresentada por Desiré Bonnaffoux, na sua obra Música Popular Antiga de Cabo Verde (1978), como sendo de São Vicente e datada por volta de 1895 – e com o tempo foram sendo alterados pela transmissão oral: o que Teté e Jack Pina cantam não é exatamente a letra fixada por Cardoso.

Ainda no que diz respeito à música e a aspetos etnográficos de Cabo Verde, Pedro Cardoso em Folclore Caboverdeano, editado pela primeira vez em 1933, revela a sua atenção face ao batuku e ao finason, tendo reproduzido trechos (para cuja recolha contou com um colaborador, António Cortez) seguidos de um texto sobre a sinboa (cimbó) e um glossário de expressões de Santiago. Esta interessante obra de conteúdo heterogéneo que a torna quase um almanaque – traz até partituras de mornas –, compõe-se, na primeira parte, de textos sobre o folclore, o crioulo, com noções de gramática e fonética, as ligações entre Cabo Verde e o Brasil. Na segunda (com o subtítulo “Cancioneiro”), o autor publica uma série de poemas seus arquitetados, segundo ele, sobre motivos populares e empregando o crioulo do Fogo, a que se seguem alguns ditos e um glossário de expressões desta ilha, além da parte dedicada a Santiago. Um apêndice final informa sobre a edição em Portugal, por José Osório de Oliveira e a pedido de Pedro Cardoso, de Mornas cantigas crioulas, que Eugénio Tavares lhe tinha entregue para publicar. Trata-se da reprodução de um artigo publicado em A Mocidade Africana (maio 1932) em que o poeta manifesta a sua discordância da grafia adotada, que não respeitou a original de Tavares. Ainda relativamente a este último, o livro termina com o equívoco – depois esclarecido nas páginas de O Eco de Cabo Verde (01.09.1933) – de atribuir a Tavares a autoria da morna aí reproduzida, “Já m’crebo”, que na verdade é de Jorge Barbosa.

A tabanka, que nos anos 1930 era considerada um “espetáculo grotesco” e alvo de reivindicações para que fosse reprimida, pelo seu “gentilismo”, foi defendida por Pedro Cardoso, que a um artigo n’O Eco de Cabo Verde (01.06.1933), responde em versos no mesmo jornal recomendando ao crítico não ter ciúmes do “carnaval vadio”, e afirmando que o Carnaval é a tabanka dos brancos. “Pelo ritmo de pandorga/está dentro ou pouco dista/da fresca modernidade/Até parece em verdade/um poema sinfónico futurista!…” (O Eco de Cabo Verde, 01.07.1933). O poeta foi por outro lado um grande defensor do crioulo. Além de ter produzido os seus escritos em português e na língua materna, fica patente a sua atitude ao responder, nesse mesmo jornal, a um artigo de João Miranda, refutando afirmações que considera preconceituosas. No artigo intitulado “Pelos direitos do crioulo”, afirma: “É equívoco e imperdoável injustiça atribuir-lhe a responsabilidade do nosso atraso”, e coloca o crioulo em pé de igualdade com o mirandês, o açoriano e outras especificidades dentro do império português. Fica evidente ainda, nesse texto, o seu respeito e admiração pela cultura popular, ao afirmar: “Não somos nós que ao povo ensinamos a morna, mas sim, é ele que a inventa e no-la transmite, assim cálida e triste” (O Eco de Cabo Verde, 01.10.1933). Sobre a morna, Pedro Cardoso, que reproduziu em Folclore Caboverdeano (1933, pp. 63-64) o soneto em que José Lopes defende o termo inglês mourn como origem da designação da morna, responde com outro soneto em que contradiz a ênfase do outro nas ideias de dolência e morbidez. “Morna! Mestre, não é só dolência e pranto!/Se às vezes plange como o fado da desgraça,/Outras celebra a Vida: é de epopeia um canto!”. Pedro Cardoso lamenta no mesmo livro que sobre o folclore cabo-verdiano nada tivesse sido feito, “nada escrito com método e seriedade”, e que as poucas vezes que via algo escrito sobre o assunto, tratava-se de salientar o insólito, “quase sempre com o propósito de ridicularizar a ‘selvagidade’ indígena”.

Como poeta e jornalista, Pedro Cardoso tem textos dispersos por vários periódicos. Terá começado ainda como aluno do Seminário-Liceu de São Nicolau, quando assina Pedro Monteiro e dedica aos seus conterrâneos da ilha do Fogo um poema sobre a fome (A Esperança, junho 1901), entre outras colaborações. Seguiram-se várias outras publicações, como A Voz de Cabo Verde (1911-1919), O Independente (1912-1913) e O Manduco, do qual foi fundador, proprietário e diretor (1923-1924). Este período corresponde ao seu afastamento da função pública, deixando depois o jornal nas mãos de outros, já que na qualidade de funcionário público não o podia dirigir. E ainda, já nos anos 1930, O Eco de Cabo Verde (1933-1935). Diversas publicações portuguesas tiveram-no também como colaborador, como A Mocidade Africana, Jornal das Colónias, Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, entre outros. Uma lista extensa é fornecida pelo historiador João Nobre de Oliveira na sua obra A Imprensa Cabo-verdiana (1998), da qual se extrai a lista dos livros de poemas abaixo indicados. Para além dos textos jornalísticos e poéticos, produziu uma obra de carácter técnico Apontamentos – Alfândega de Cabo Verde (sumário histórico), a nova organização aduaneira; pautas com as diversas alterações e outros preceitos legislativos compilados por Pedro Cardoso, segundo o historiador. Este, contudo, não esclarece se a obra foi efetivamente publicada, embora tenha sido anunciada.

As suas crónicas na imprensa cabo-verdiana, tal como no caso do seu contemporâneo Eugénio Tavares, dão vazão ao seu espírito crítico face a situações de injustiça e incúria que se viviam na então colónia sob administração portuguesa, e são veículo para a sua indignação e posicionamento político, alinhado com o pensamento socialista, republicano e anticlerical. Mas, sobretudo, o seu olhar incidia sobre a vida em Cabo Verde. Criticou a inferioridade legal dos funcionários públicos locais face os metropolitanos; polemizou sobre o seminário em que estudou, dizendo não lhe dever nada; chamou a atenção para o facto de haver na ilha do Fogo uma única escola para o sexo feminino, numa população de 22 mil habitantes; falou, entre outros temas, da estiagem, da fome, de questões ambientais: “Arborizar a província é tão necessário como educar a juventude”, lê-se numa das crónicas assinadas por Afro na secção “A Manduco”, em A Voz de Cabo Verde (O Manduco, orgs. Brito-Semedo & Morais, 2008).

Numa outra vertente, escreveu textos que falam da situação de inferioridade dos negros, exaltam a África pela sua história e mitologia e manifestam uma atitude pan-africanista profundamente crítica face à política colonial das potências europeias da altura. A propósito do poema “Ode à África” (publicado em 1921; reproduzido no Voz di Povo, 23.09.1981), Luís Romano, na mesma edição, comenta: “Sua evocação das glórias africanas (…) nada mais é do que o incitamento à imagística patriótica africana para a consciência da sua submissão ao domínio estrangeiro, que deverá ser expulso da África para que os africanos finalmente recuperem a terra generosa que lhes foi arrebatada.” Estas atitudes, tal como a defesa do crioulo e a valorização da cultura popular, compõem o perfil de um intelectual engajado politicamente numa luta que, se no seu tempo não recebia esse nome, mais tarde será chamada “nacionalista”, tal como Romano irá nomeá-lo no título do seu artigo no Voz di Povo

A imprensa Cabo-verdiana, 1820-1975 dá conta também da vida profissional de Pedro Cardoso na área aduaneira e como professor primário em carácter particular. Viveu temporariamente em várias das ilhas de Cabo Verde, na qualidade de funcionário das alfândegas, a partir de 1905. Primeiro esteve na Brava, altura do seu primeiro contacto com Eugénio Tavares, depois no Fogo, e a partir de 1909 em São Nicolau. Na Boa Vista, a partir de 1912, foi o chefe da delegação aduaneira e patrão mor da ilha. Em 1918, volta à ilha do Fogo, como recebedor da Fazenda em São Filipe, cargo que ocupa até 1924 e que voltará a ocupar entre 1926 e 1931, no concelho da Praia. Entre 1924 e 1926, esteve em São Vicente ligado a uma casa comercial. Aos 50 anos, reformado por razões de saúde, sai do arquipélago pela primeira vez, dirigindo-se aos Estados Unidos para tratamento e regressando via Lisboa.

Os seus últimos anos de vida serão passados entre a ilha do Fogo e a ilha de Santiago, onde vem a falecer em 1942. Nesta altura, Pedro Cardoso teve como empregada doméstica Nha Gida Mendi, cantadeira de finason, que já em menina trabalhara em sua casa, tendo sido ama de todos os seus filhos e acompanhado a família nas suas várias transferências entre as ilhas. Curiosamente, é só depois da morte do patrão e quando se estabelece por conta própria, que ela se dedica ao finason, ganhando fama em Santiago. Outra personagem da música de Cabo Verde ligada a Pedro Cardoso é o seu neto, o compositor Pedro Rodrigues que musicou alguns poemas seus.

Casa onde nasceu Pedro Cardoso. Foto: Gláucia Nogueira

Na cidade de São Filipe, desde finais da década de 1940, o local onde nasceu o poeta (também conhecido como Meia Laranja) chama-se largo Pedro Cardoso, nome atribuído também a uma das ruas que partem daí. Na pequena casa que foi o local do seu nascimento, foi colocada uma placa com versos da sua autoria, que “excessos nacionalistas de 1974/75 fizeram com que fosse arrancada”, segundo Fausto do Rosário (Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens), sendo depois afixada uma outra por iniciativa de Agnelo Vieira de Andrade, ativista cultural da cidade de São Filipe. No centro do largo, um busto do poeta foi mandado instalar pela Câmara Municipal no início da década de 2000. Uma das cenas do filme Ilhéu de contenda (1996) baseado no romance homónimo de Henrique Teixeira de Sousa, passa-se aí, fixando a imagem (que, aliás, é a foto da capa do CD com a banda sonora do filme) do largo ainda sem o busto, com a pequena casa ao fundo.

Pelo Decreto Presidencial 3/95, de 2 de fevereiro, Pedro Cardoso foi condecorado postumamente com o Segundo Grau da Ordem do Dragoeiro. 

Em 2015, foi criada na cidade da Praia a editora e livraria Pedro Cardoso Livraria, cuja designação homenageia o poeta.

Composição

Nha codé

Obras publicadas

(lista não exaustiva)

  • Cantares, [?], Cabo Verde, 1907. Poesia, em português.
  • Primícias, Typ. Nogueira, Lisboa, 1908. Poesia, em português.
  • Caboverdeanas, [?], Cabo Verde, 1915. Poesia, em português.
  • Jardim das Hespérides, Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1926. Poesia, em português – mesmo título de uma obra do poeta José Lopes.
  • Duas Canções, INCV, Praia, 1927. Poesia, em português.
  • Algas e corais, Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1928.
  • Hespérides – fragmentos de um poema perdido em triste e miserando naufrágio, Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1930. Poesia, em português.
  • Folclore cabo-verdiano, Maranus, Porto, 1933 (reedição: Solidariedade Caboverdiana, Paris, 1983). Ensaio, recolhas.
  • Conferência lida por Pedro Cardoso no Teatro “Virgínia Vitorino” (Praia), em 30 de dezembro de 1933, Porto, 1934 (reproduzida em Pedro Cardoso. Textos jornalísticos e literários – Parte I, 2008).
  • Camões perante o mundo culto (conferência). Tipografia Minerva de Cabo Verde, Praia, s/d [1934] (reproduzida em Pedro Cardoso. Textos jornalísticos e literários – Parte I, 2008).
  • Sonetos e redondilhas. Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1934.
  • Morna e saudade, [?], Cabo Verde, 1940. Poesia, em crioulo e português.
  • Letras para a morna ‘Nha codé’, [?], Praia, 1940. Poesia em crioulo.
  • Cadernos luso-caboverdianos (3 volumes: E mi que ê lha’r Fogo, 1941; Ritmos de morna, 1942; Sem tom nem som, 1942. Tipografia Minerva de Cabo Verde, Praia. Poesia, em crioulo.
  • Lírios e cravos, Ermesinde, 1951. Poesia, em português.

Em compilações

  • Jornal da Europa (22.04.1928), número especial do dedicado a Cabo Verde, ao lado de Jorge Barbosa, Eugénio Tavares, José Lopes e João José Nunes.
  • No reino de Caliban – Antologia panorâmica da poesia africana de língua portuguesa (org. Manuel Ferreira). Plátano, Lisboa, 1975.
  • 50 poetas africanos (org. Manuel Ferreira). Plátano, Lisboa, 1997.
  • Pedro Cardoso, textos jornalísticos e literários – parte I (org. Manuel Brito-Semedo & Joaquim Morais). IBNL, Praia, 2008. Inclui as duas conferências e as crónicas com pseudónimo Afro em A Voz de Cabo Verde.

Para saber mais

  • A imprensa cabo-verdiana, 1820-1975, de João Nobre de Oliveira, Fundação Macau, Macau, 1998.
  • Voz di povo – Suplemento “1º centenário do nascimento de Pedro Cardoso” (texto de Luís Romano e vários depoimentos), 10.09.1983.
  • Ponto & Vírgula, setembro 1983.
  • Littérature Caboverdienne: http://www.lirecapvert.org/pedro-monteiro-cardoso1883-1942.html

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