Cola boi/Aboio

Por GN em

Por Gláucia Nogueira

Curral de trapiche. Foto de João Freire reproduzida em Cantigas de Trabalho

Conhecidas como cantigas de curral de trapiche, aboios, cantigas de aboio ou cola boi, em cabo-verdiano, estas expressões “pela natureza da sua inspira­ção, parecem-nos enraizar num substrato muito remoto, que tem as suas origens na introdução da cana-de-açúcar em Cabo Verde”, escreve Oswaldo Osório com Cantigas de Trabalho.

O autor prossegue: “Já diluído pelo tempo, o eco das relações senhor/escravo, pressentidas através de um ou outro aboio a tempo recolhido, chega até nós como uma imitação, um fingimento dessas relações, em que a referência a bodas de pompa, a um castigo severo ou a saúdes laudatórias, não é mais que a reminiscência desse período”.

No trecho a seguir pode-se observar os indícios das festas faustosas dos ricos e pode­rosos da época, a crueldade dos castigos por parte dos antigos senhores, assim como a subserviência imposta pelo tipo de relações existente, num contexto em que enge­nhos de açúcar foram movidos por escravos, tendo em conta a inexistência de  engenhos movidos a água em Cabo Verde e até que os bois viessem substituir a força humana.  

Ohh! Vamos a vér que sinal é ‘quele’

– É navi de Govêrre

Que ti ta bem c ‘rregade de mantimente

Pe servi na boda de Nhanha Grande

C’ Josê Vanânce.

Óooh! mamè já mandã pa flôbe

Se’ me tchegá na R ‘bèra

Sem corda de Pomba-Boi

ÊJe ta quebra-me um perrna

Êle ta sapa’me um brace

E ele ta cambâ’ me na Covada Funda.

Oh! saúde pa sociadade

Oh! saúde

Oh! la vai saúde

Oh! saúde pe Senhor Rei

Bom proveite pa Senhora Rainha

Na companha de se codèzin!

Cantiga de aboio reproduzida em Cantigas de Trabalho

Luís Romano observa em “Cabo Verde – Renascença de uma Civilização no Atlântico Médio” que os cantos de aboio “servem para encorajar o trabalho em que o homem fala com o boi como se fosse um compa­nheiro de desdita”. Nesse sentido, analisa Oswaldo Osório, surge uma “humanidade do boi”, num primeiro momento, e mais tarde a sua mitificação, com base no “relacionamento que entre os dois – escravo e alimária – se estabeleceu: no terreiro de trapiche onde tem de o ensinar, o educar a aceitar o jugo da canga; no campo, para onde ele se dispara, dir-se-ia que a fugir da escravidão, sobrevindo então as longas caminhadas para a captura de Pomba-Boi, as aventuras…”.

Como refere Osório, “muitas são as lendas que correm à volta dos bois, talvez originadas dessa vivência ou convivência multissecular do homem e do bicho a revezarem-se no trapiche — um pri­meiro do que o outro —, a partilharem um destino co­mum no círculo interminável do pau de almajarra: de so­frimento, canseiras e maus tratos; destilando não só a cal­da para o açúcar, o mel e a aguardente, mas também suor, sangue e lágrimas. O resto, a interação de culturas — a africana e a portuguesa —, caldeou-se nesse género oral: os aboios”.

Em geral, o conteúdo das cantigas fala da fama do boi que se habituou à vida livre nos campos, nas épocas de folga, e se tornou arisco e por vezes mesmo perigoso, só obede­cendo à voz do seu tratador. Este, para valorizar a sua atuação, inventa histórias sobre a ida ao campo buscar o boi, au­mentando as dificuldades. No regresso, vai cantá-las, no curral, “numa espécie de epopeia, como se fosse alguém que tivesse viajado para terras muito longes, de onde traz novidades num exagero de aventuras, que o pessoal adora, copia e vai transmitin­do para outras povoações”, refere Osório, citando Luís Romano e recordando que as cantigas podem ser satíricas, de humor ou sobre aventuras amorosas.

O Boi (que Luís Romano grava com maiúscula), tem uma função emblemática. “Arquétipo trazido das profundezas da noite colonial, a simbolizar, talvez, a sujeição, a paciência, mas também as reservas insuspeitadas para lances de coragem e rebeldia”, escreve Osório.

Augusto Casimiro, oficial do exército português de­portado para Cabo Verde na década de 1930, percorreu as ilhas e publicou vários textos sobre aspetos etnográficos que observou. Um trecho da sua autoria é reproduzido em Cantigas de Trabalho:  

Geme o pau do almajar, — os bois, estendendo o pescoço sob o jugo, lentos, andam à roda. Um ra­paz chega a cana de açúcar aos ferros que a es­magam… Os coladores seguem atrás dos bois. Canção monótona dos ferros, da cana esmagada… Cheiro ácido, de calda, no ar parado e morno. 

Só os ruídos do trapiche o perturbam, numa longa queixa. Os homens e os bois retardam o passo, fatigados, cismando… Param um momen­to. E o mundo pára.

Mas, de súbito, o silêncio suspende-se, os ani­mais acordam, ergue-se um grito longo, alado gri­to que se prolonga e embala a si mesmo, magoa­do, a consolar-se. Gemem, mais vivos, os ferros esmagando a cana. Movimento mais rápido. A voz alteia-se, prolonga-se… É a saudade da selva lon­gínqua, a África natal doendo-se e lembrando-se? A voz sobe, espraia-se na inspiração da larga arca do peito, enche o vale profundo e os corações, to­ca as névoas do alto… Súbito cai em sincope. E volta, rude e sonora, como um tambor rufando, um grito de atalaia ou combate, o marulho de on­das aos pés da falésia ou na funda caverna. Bai­xa, queixa-se, espraia, arrola, acarinhando-se… Dôr de exílio, mágoa de nostalgia… Amargura. Destêrro. Saudade.

Augusto Casimiro, em Portugal Crioulo, 1940

Ouvir

O livro da autoria de Oswaldo Osório inclui um disco com quatro gravações: bombena, cola boi e duas recolhas de cantos do trabalho ligado à proteção da lavoura contra os pardais. Recolhas das cantigas de aboio em suporte sonoro foram também realizadas na década de 1990 pela equipa do etnólogo francês Jean-Yves Loude, estando disponível em CD editado em França pela Ocora (Cap-Vert – Un Archipel de Musiques, 1999) e também pelo investigador português José Moças, que inseriu um trecho de cola boi no CD Dez Granzin di Tera (1998), da coleção A Viagem dos Sons.

Audios do disco que acompanha o livro “Cantigas de Trabalho”, de Oswaldo Osório
Cola boi, por Frederik Da Luz, Santo Antão – CD Un archipel des musiques
Cola boi, por José dos Santos Delgado, Paul, Santo Antão – CD Dez granzin di terra

Blimundo

A tradição oral em Santo Antão fixou uma história relacionada com os bois de trapiche e esta história foi adaptada para obras em diferentes formatos: Leão Lopes publicou o conto Blimundo, nome do personagem bovino que foi também contada e cantada por Celina Pereira, no seu disco Estória, Estória… No Arquipélago das Maravilhas e no audiolivro Do Tambor a Blimundo. Em versão instrumental, o tema “Blimundo” foi gravado por Bau e Travadinha.

Em anos mais recentes, a história de Blimundo continuou a inspirar criadores: Caplan Neves adaptou-a para o teatro, e o Grupo de Teatro do Centro Cultural do Mindelo já encenou a peça várias vezes.

Por sua vez, Tambla Almeida na curta-metragem Ulime faz também alusão a Blimundo. Na peça teatral Munda, a encenadora Sara Estrela põe o foco na personagem Codezinha, a vaquinha de Praia que foi a isca que atraiu o boi para a morte. Boilimundo, do coreógrafo Djan Neguin, por outro lado, encena a morte do boi. Blimundo – O maior boi do mundo é o título que a história recebeu no Brasil, ao ser recriada por Celso Sisto.

Ver e ouvir

Celina Pereira conta a história de Blimundo

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