Cantigas marítimas

Por GN em

Ilha do Fogo. Foto: Gláucia Nogueira

Por Gláucia Nogueira

Tal como as cantigas agrícolas, refere Oswaldo Osório em Cantigas de Trabalho, as marítimas têm uma função lúdica dificilmente separável da atividade laboral. Assim, formam “um todo rítmico-gestual, sublimando as fadigas de um labor muitas vezes penoso e arriscado, na luta pela vida”. A necessidade de chegar primeiro para conseguir o pesqueiro mais importante exige remar com energia. Por outro lado, de forma lúdica, os remadores competem uns com os outros para medir forças.

O conjunto das cantigas marítimas será certamente muito mais amplo do que aquilo que foi recolhido, admite o autor, referindo que o que apresenta “não é mais que pálida imagem de um conjunto maior e diversificado que, a seu tempo, virá a ser recolhido”. Que seja do conhecimento público, não foram feitos outros trabalhos do género desde que Cantigas de Trabalho foi publicado.

Três cantigas são reproduzidas no livro: uma recolhida por Luís Romano e publicada em “Cabo Verde – Renascença de uma Civilização no Atlântico Médio”, uma recolhida por Ildo Lobo, que na época fez parte do repertório do grupo Os Tubarões, segundo Osório, e a terceira pelo próprio autor. As duas primeiras são classificadas como “acalentos de pescadores” e a terceira como “cantiga de marinheiros”, que fica aqui como exemplo.

Página de Cantigas de Trabalho, de Oswaldo Osório

Um trecho da novela “Distância”, de Teobaldo Virgínio, reproduzida no livro de Osório, descreve um desafio entre botes de patrões rivais, que se encontram no regresso da pesca:

Vínhamos na altura do Cavalo e vimos o “23” chegar do alto de Figueiras. Compassámos rema­da e parámos. Estávamos à mesma distância da Boca da Pistola. Andávamos rixados e chegou o momento de tirarmos a prova. Eu ia mostrar Djêdjê. “São Paulo” trinchava o mar como uma canoa. Estávamos lado a lado e o mar picado. Para en­curtar distância apertei na curva e o “23” viu a nossa popa. Os rapazes estavam a remar como danados, mas no “23” houve uma mudança e a sua proa cresceu para a nossa banda. Então co­mecei a “colar” os companheiros:

Ipe, ipe rapazim

ipe, ipe, socâ bô remo

ipe, ipe, copanhá ondra.

Meti mais na curva, ipe, ipe… quando uma vaga enorme se levantou à nossa popa. Eu vi que tinha chegado a nossa hora. Nessa altura o “23” havia ficado para trás, mas o desafio estava acabado. Cada qual salve a sua vida, gritei. Os companhei­ros atiraram-se rapidamente ao mar antes de a va­ga rebentar.

Teobaldo Virgínio, em Distância

Neste trecho, o desfecho parece aproximar-se de um naufrágio. Mas, por outro lado, se o mar permitir que ambos os contendores cheguem a terra sem problemas, no momento da chegada as pessoas que de longe acompanharam o desafio ajudam a arrastar o bote vencedor numa alegria festiva.

Além das cantigas de caráter responsivo, que servem para estimular as remadas ou estão presentes em outros momentos de trabalho coletivo, como o arrasto dos botes ou o lançamento ao mar de uma embarcação, existem também as que são cantadas individualmente, como um monólogo. Por exemplo, a toada de um pescador que se faz ao mar na companhia do seu cão, e ao ritmo das remadas vai desfiando memó­rias e problemas que o preocupam, que é um dos exemplos apresentados em Cantigas de Trabalho.

Voltar

error: Content is protected !!