Cesária Évora

Por GN em

Cesária Évora em foto do material promocional de Café Atlântico (1999)

Cesária Joana Évora

Mindelo, São Vicente, 1941 – Mindelo, São Vicente, 2011

Cantora

Primeiro cabo-verdiano a tornar-se uma celebridade mundial, Cesária Évora pôs Cabo Verde no mapa, na virada do século XX para o XXI. Numa época em que os fenómenos mediáticos da indústria discográfica quase dependem mais da imagem que da música, a cantora mindelense, longe de encarnar os padrões estéticos vigentes, respondia com monossílabos em entrevistas, aparecia em palco quase monolítica, alheia a noções de expressão corporal e sem grande empenho em comunicar com o público. Mas o facto é que seduziu multidões pelos países por onde passou. Pela sua voz, bela, sem dúvida, mas também por um carisma difícil de definir ou situar, talvez pela espontaneidade do seu canto meio distraído, sem ênfases ou grandes voos. “O seu modo tranquilo e dominador” no palco, escreveu no jornal Voz di Povo (19  de janeiro de 1987) o cronista Pedro Delgado.

E já era esse o seu jeito de cantar, nos bares e na rádio em São Vicente, no primeiro capítulo da sua lenda de Cinderela. Isso fica claro na compilação que reúne as suas primeiras gravações Rádio Mindelo – Early Recordings.

Cesária cresceu num tempo em que o apartheid social em vigor proibia os pés-descalços, como ela, de subir ao pavimento da principal praça do Mindelo, reservada ao passeio das famílias abastadas. Aos 7 anos, perde o pai, Djute, que tocava violino. Era uma época de grandes dificuldades no arquipélago, às voltas com secas permanentes. A mãe deixa-a aos cuidados de religiosas e, mais tarde, de uma família com mais recursos. Por volta dos 13 anos Cesária liberta-se dessa tutela e entra na vida adulta a flanar pela cidade, cantando pelos bares frequentados por marinheiros de passagem e boémios locais. Quem primeiro reparou na sua voz foi Eduardo Jon Xalino, músico mais tarde emigrado na Holanda, que na época foi seu namorado. “Um dia, eu estava a cantar, ela seguia a minha voz. Disse-lhe que tinha uma bela voz, respondeu-me que não gostava de brincadeiras, que apenas cantava quando estava a passar a ferro, para se distrair…”, contava Xalino, mais de 50 anos depois. O músico garantiu que não estava a brincar, que a sua voz realmente era bonita, e perguntou se ela queria beber alguma coisa. “Pediu um pontchinho, bebeu um gole, fechou os olhos e soltou a voz…”

A primeira vez que o nome de Cesária Évora apareceu nas páginas de um jornal foi em 1965. “A Cesária, é mesmo ela, aquela moça de seios perfeitos e ancas ondulantes assim como o mar brincando na praia, virá à nossa mesa pedindo que a deixes beber do teu copo, cantando só para ti a partida do Toi da Djinha, que um dia sem dizer nada a ninguém deu o nome para ir trabalhar nas roças, e não mais voltou”, escreveu o cronista Jorge Miranda Alfama no jornal O Arquipélago (1 de abril de 1965). Por essa altura, a cantora costumava atuar na rádio, em festas particulares e nas noites boémias da cidade.

Foi a partir de gravações feitas com acompanhamento de Luís Rendall, o filho deste, Djon Rendall, e Frank Cavaquinho que, por iniciativa deste último, foram editados na Holanda pela Casa Silva (mais tarde Morabeza Records) os dois primeiros discos que contêm a voz de Cesária, em 1965. Em 1968, foi editado um novo disco em que Cesária aparece a cantar, ao lado de Jack Monteiro e com acompanhamento do Conjunto Mindelo. Os dois intérpretes são apresentados como “promissores vocalistas da constelação cabo-verdiana” na capa do disco intitulado Segredo de um coração. Segue-se outro EP com os mesmos intérpretes, intitulado Melodia caboverdiana.

A partir do início dos anos 1970, Cesária deixou de cantar em público durante cerca de 12 anos. Em 1983, reapareceu e numa entrevista a Leão Lopes justificou a sua ausência: “Estive em casa todo esse tempo, porque me angustiou o facto de tanto cantar e gravar, sem que disso tirasse algum proveito. Fui explorada e nunca tive a sorte de poder encarar a música como um possível futuro. Por isso fechei-me em casa sem prazer nenhum de sair.” (Ponto & Vírgula, agosto/setembro de 1983).

Cesária regressa então às noites musicais de São Vicente. Continuava sem tirar grande proveito das atuações, cantava por alguns copos de uísque, excedia-se na bebida, mas era admirada em Cabo Verde. Em 1985, entre as iniciativas que comemoram os dez anos da independência, foi convidada para participar num festival de vozes femininas organizado pela Organização das Mulheres Cabo-Verdianas (OMCV), que resultou na gravação do LP Mar azul abri’m camim – Cantá mudjer’s, com mais três cantoras.

No ano seguinte, Bana propõe-lhe gravar um disco: Cesária, editado em 1987. É por esta altura que surge Djô da Silva, que virá a encabeçar a equipe de arquitetos do êxito mundial da cantora. Filho de cabo-verdianos, criado no Senegal e residente em Paris, Djô da Silva vinha produzindo alguns trabalhos musicais. Propôs-lhe trababalharem juntos e em 1988 produz o LP La Diva aux pieds nus, com arranjos de Manu Lima em metade das faixas e de Paulino Vieira na outra metade. O disco que vem a seguir, Destino de Belita (1990), aposta no gosto crioulo pelo zouk e por tudo o que se possa dançar, com arranjos elétricos, mas sem grandes resultados. Os cabo-verdianos iam ao baile dançar mas compravam poucos discos.

É por esta altura que entram em cena os franceses que contribuirão para construir a imagem da diva mindelense e transformá-la num fenómeno de vendas e celebridade. É a época em que vários artistas da cena internacional do pop e do rock se voltam para o acústico e em que o rótulo world music, englobando toda a música popular exterior ao contexto anglo-americano, começa a se difundir. Djô da Silva propusera à Mélodie, principal etiqueta a trabalhar com música africana em França naquela época, a distribuição de Destino de Belita. Mas  disco não convence François Post, na época a trabalhar naquela editora e mais tarde na Lusafrica. Contudo, o produtor francês aprecia os temas acústicos.  

 Havia também a dúvida de como vender a imagem de Cesária. Ao visitar São Vicente em 1991, Post descobre como. No fundo, tal como ela é: crioula de 50 anos, numa casa caindo aos pedaços, como tantas outras, mas dona de uma voz rara, naquele ambiente de cavaquinhos e violões que carregam velhos tempos, ali à beira da belíssima baía do Mindelo. Essa pobreza charmosa seduz a imprensa francesa e, através de um videoclipe, começa a despertar a atenção do público para Mar azul, CD gravado nesse ano, com acompanhamento do Mindel Band, grupo expressamente formado para gravar este disco. O álbum é um marco na carreira da cantora, ainda não pelas vendas, mas pela opção por um trabalho decididamente acústico. Djô da Silva comprovara ser este o caminho certo no festival de Angoulême, em 1991, o primeiro em que Cesária participa, com um espetáculo que começa elétrico e termina acústico. Incógnito entre os jornalistas, o produtor observa os comentários que a segunda parte suscita e a frieza destes mesmos espectadores durante a primeira parte do concerto.

Nem diva nem rainha. Cize canta natural como um sussurro na ribeira denuncia as águas fartas. Quando fala, é como se viesse de uma novela de Nho Roque. Despachada, rejeita os sonhos feitos para divertir o consumidor de imagens (…) entenda quem entender, não veio para fingir.

Corsino Tolentino, em A Semana, 29.03.193

O álbum que se segue, Miss perfumado (1992) vende em poucos meses 120 mil cópias em França. Na capa, a imagem construída com cuidado, mas que é possivelmente o mais próximo que se pudesse chegar da sua autenticidade: despojada, pés no chão, simples, enigmática. Um disco gravado praticamente por dois músicos – os polivalentes Paulino e Toy Vieira, alternando-se nas cordas e no piano –, a quem se somam Escabech (reco-reco) e Malaquias Costa, este ao violino num único tema, o inesquecível “Angola”, de Ramiro Mendes, que fará levantar plateias nas salas por onde ela passar.

Daí em diante, as capas dos seus discos exibem-na em pose de estrela. Jóias, vestidos, penteados, compõem a imagem do sucesso que ano após ano vai sendo alimentado à custa de tournées anuais que a mantêm em viagem a maior parte do tempo. A sua banda de suporte, depois da saída de Paulino Vieira, altera-se para uma formação liderada por Bau e mais tarde por Nando Andrade.

A discografia de Cesária Évora é veículo privilegiado para a divulgação da produção de compositores de várias gerações, mas Manuel d’Novas, B.Léza, Ti Goy e Teófilo Chantre foram os mais gravados.

O funeral de Cize, como era chamada carinhosamente pelos amigos e admiradores, em Dezembro de 2011, teve honras de Estado e o aeroporto internacional da ilha de São Vicente recebeu poucos meses depois o seu nome.

Várias obras já foram publicadas tendo Cesária Évora como tema (ver abaixo). Ainda em vida da cantora, a jornalista francesa Veronique Mortaigne publicou Cesária Évora, la voix du Cap Vert. Vasco Martins e Tchalé Figueira fizeram a sua homenagem num livro publicado em 2015 e a escritora polaca Elżbieta Sieradzińska publicou a sua obra sobre Cize em 2021. Quanto a filmes, além do documentário Cesária, nha sentimento (2012), de Sofia Leite, estreou em março de 2022, Cesária Évora, da realizadora portuguesa Ana Sofia Fonseca.

Discografia

  • Participação nos dois EP intitulados Mornas de Cabo Verde, EP, Casa Silva, Roterdão, 1965. Com Luís Rendall, Djon Rendall e Frank Cavaquinho.
  • Participação nos dois EP do Conjunto Mindelo. Segredo de um coração e Melodia caboverdiana, Casa Mimosa, SV, [1968].
  • Participação no LP Mar azul abri’m camim – Cantá mudjer’s, Ovação, Lisboa, 1985.
  • Cesária, LP, Discos Mindelo, Lisboa, 1987.
  • La diva aux pieds nus, LP, Lusafrica, Paris, 1988. Reeditado em CD como Musique du Cap-Vert (Buda Records, 1989). 
  • Distino di Belita, LP, Lusafrica, Paris, 1990. Uma edição pirata em CD é lançada nos EUA com o título Nova Sintra (West Wind Latina, 1998).
  • Mar azul, CD, Lusafrica, Paris, 1991.
  • Miss perfumado, CD, Lusafrica, Paris, 1992.
  • Sodade (compilação), CD, Lusafrica, Paris, 1994.
  • Cesária, CD, Lusafrica, Paris, 1995.
  • Cesária a l’Olympia, CD, Lusafrica, Paris, 1996.
  • Cabo Verde, CD, Lusafrica, Paris, 1997.
  • Best of (compilação), CD, Lusafrica/BMG, Paris, 1998.
  • Cesária Évora remixes, CD, Lusafrica, Paris, 1999.
  • Café Atlântico, CD, Lusafrica, Paris, 1999.
  • São Vicente di longe, CD, Lusafrica, Paris, 2001.
  • Voz d’amor, CD, Lusafrica, Paris, 2003.
  • Rogamar, CD, Lusafrica, Paris, 2006.
  • Rádio Mindelo – Early recordings, CD, Lusafrica, Paris, 2008.
  • Nha sentimento, CD, Lusafrica, Paris, 2009.
  • Cesária & … (duetos), Lusafrica, Paris, 2010.
  • Mãe carinhosa (póstumo), CD, Lusafrica, Paris, 2013.

Para saber mais

  • Cesária Évora, la voix du Cap Vert. De Véronique  Mortaigne, Actes Sud, Paris, 1997. Biografia, em francês.
  • Cesária – A rota da Lua vagabunda. Tchalê Figueira e Vasco Martins, editado pela Associação da Orquestra Clássica do Centro, Coimbra, 2015.
  • Cesária Évora. De Elzbieta Sieradzinka. Editora: Rosa de Porcelana, Lisboa, 2021.
  • Cesária, nha Sentimento, de Sofia Leite. Documentário. RTP/Lusafrica, 2012.
  • Cesária Évora, documentário de Ana Sofia Fonseca. Documentário. Carrosel Produções, 2022.

Ver e ouvir

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