Os domadores de sons: antigos idiomas dos tambores de Son Jon

Por GN em

Por Alcides Lopes

N’ ten nada més sébe du ki entrada de mês de maio,

 n te txi kel tambor de parede, estika-l pele, pertá-l adriça, 

botá-l na kosta, sinti un araja na kara e, enton, ter o preser de apresiá 

kel rabenkada de pó kunkli-bo dent de pele d’uvid.

O Saudoso Jon de Nhonhô em entrevista, Porto Novo, junho de 2014.

– Quem foi um dos homens mais práticos e inteligentes que já viveu nesta ilha de Santo Antão? Perguntava, um dos tamboreiros aos seus colegas “tocadores de tambor”, enquanto bebiam cerveja e refrigerante frescos, com os instrumentos às costas, à sombra de um “pé de béjinha” – acácia americana, também conhecida como “algaroba” no agreste pernambucano.

– Juntinha! Respondeu um dos homens. – Quem? Aquele gentio que antigamente vivia nas grutas da Ribeira  da Igreja e consertava panelas?

– Exatamente. Um dos interlocutores retomava. – Ele era um artesão de mão cheia e uma das especialidades dele que eu admirava muito, quando ainda era rapaz novo, era a sua habilidade de fazer “colheres de folha”. Ele pegava as tampas daquelas latas grandes de banha de porco, recortava partes com uma tesoura de cortar lata e, habilmente, criava aquelas colheres. As quais eram muito úteis, para a alimentação dos homens de trabalho, nos dias de juntá mõn nas meradas e nos campos de sequeiro, durante a colheita de midje ma fejôn para as festas de Son Jon.

Lembro-me vagamente de Juntinha. Tenho memórias dele, sentado numa pedra no quintal da casa dos meus pais. Calafetava panelas de alumínio, vedava as canecas, pratos, bacias de esmalte furados, com rebites de chumbo e fazia as bandejas de lata nas quais se assavam pão, bolacha doce, e roscas no Son Jon, diferentemente do pão de sal, o qual se assava no piso de tijolos do forno, na padaria de nhô Djô Fuba. 

Durante a minha primeira infância, vivi na casa dos nossos pais, com vários irmãos e irmãs, onde os únicos dias em que não se acordava com o cheiro do pão quentinho saindo do forno, era aos domingos – dia de missa e catequese. Costumava ir à missa matinal na companhia da minha avó, com quem eu dormia à luz de candeeiro ou lamparina. 

Na época, a Vila do Porto Novo ainda não tinha “descoberto” a energia elétrica. Uma das raras ocasiões favoráveis em que podíamos brincar à luz de Petromax, ou da iluminação elétrica a partir de pequenos geradores individuais, era durante as festas de Son Jon, as quais aconteciam no bairro de Armazém, junto ao antigo chafariz que existia próximo à atual praça de pescadores. Na avenida Amílcar Cabral, construíam-se as barracas, instalavam-se as bancas de jogo de azar, e no terraço de Nhô Hilário em Chã de Camoca fazia-se o baile popular ao som do grupo local The Seven Stars.

A esta altura, os grupos de tocadores de tambor ou tamboreiros, formados essencialmente por homens, pois não me lembro de ter visto mulheres tocando tambor na década de 1980, já tinham exercido a sua magia sonora sobre as mentes ávidas e criativas da criançada. Nós brincávamos de imitar os tamboreiros e, no cortejo de Son Jon, nos atraíam principalmente os navios que navegam por entre a moldura humana de tamboreiros, capatazes e koladeiras.

Já tive tambor de panela de alumínio, aquelas que Juntinha não podia fazer mais nada por elas, latas de banha de porco forradas com “pele” de plástico industrial e arcos de metal e, finalmente, um tamborzinho de pele de cabrito, do qual não me separei, por um mês inteiro. Um dos aspectos mais significativos na formação do ethos do tamboreiro está relacionado com a dimensão da mimesis, no aprendizado do instrumento percussivo, através da ludicidade própria do espírito festivo.

Quando os mais velhos nos ensinam que, segundo os antigos, as festas vêm de tempos imemoriais, devemos prestar mais atenção à mensagem contida nos seus conselhos. O dia mais longo do ano, o Solstício de Verão foi amplamente celebrado na Antiguidade como o triunfo da Luz sobre as Trevas, uma ocasião de renovação, assim como acontece durante as festas do Equinócio de Inverno – o triunfo da Vida e da Natureza (Villagra, 2022). Ainda na Idade Média, Santo Agostinho (354-430) percebeu a vantagem de estabelecer o feriado de São João numa data amplamente festejada, desde épocas anteriores ao século XV. 

O uso do fogo, da água e das ervas sagradas pode ser associado tanto aos celtas, gregos, romanos, cristãos e islâmicos, etíopes e egípcios, como também aos aztecas, andinos, aborígenes ou qualquer outro povo na face da terra. Historicamente, as fogueiras buscam bênçãos para as terras e bons augúrios para os parentes. Do que consta sobre o Islam andaluz e magrebino (norte da África), as práticas rituais eram muito semelhantes. Contudo, é interessante ter em mente o facto de que Zacarias e João Baptista são ambos santos no Cristianismo e no Islam, sendo neste último considerados, também, profetas.  

Por sua vez, as atitudes críticas com relação aos costumes como “cantos obscenos” e os bailes com o pula-fogueira ou luminária podem ser rastreadas nas autoridades religiosas desde o século VII. Discursos que associavam as fogueiras e a reunião à sua volta como práticas demoníacas, que, da mesma forma, condenavam a música e determinados instrumentos ao banimento foram bastante comuns. Entretanto, as festas de São João foram celebradas por cristãos muçulmanos e judeus, no mundo Andaluz, conhecidas como Ansara ou Mahrayan. No calendário muçulmano de Córdoba (961) lê-se: “24 de Junho: quando Josué deteve o Sol; festa da natividade de João, filho de Zacarias.” O trecho anônimo do calendário, segundo  Mabel Villagra (Arabista Universidad Autónoma de Madrid), coincide com a passagem do livro bíblico de Josué (10: 12-13): “E o Sol se deteve e a Lua parou […] E o Sol parou no meio do céu, e não se pôs durante quase um dia inteiro.”

Um facto, certamente, corrobora e interliga o vigor entre as festas de Kolá Son Jon em Cabo Verde, São João do Nordeste no Brasil, San Juan de Barlovento na Venezuela, Saint John no Caribe e nos EUA, San Juan em Cuba e Puerto Rico e pode ser relacionado com os eventos que expandiram as fronteiras do cristianismo romano, a partir de 1492. Refiro-me ao evento que marca a rendição do reino muçulmano de Granada ao reino católico de Castela. O içamento da bandeira de Castela e a colocação da cruz cristã na Torre de Alhambra no dia 2 de janeiro  e a gloriosa entrada dos monarcas católicos no dia 6 do mesmo mês, no ano de 1492. Meses depois, os monarcas abençoaram e patrocinaram a viagem do aventureiro genovês Cristóvão Colombo às Índias, cujos erros de cálculo e subestimativas levaram-no às Bahamas em outubro de 1492 (Trouillot, 1995).

Portanto, naquelas terras fronteiriças, durante a “Reconquista”, São João foi amplamente celebrado pelos membros das três culturas: judaica, cristã e muçulmana. Durante aquela época, relatos sobre a prática festiva entre os mouros e cristãos descrevem lavagens de ruas, ornamentos destas com ervas e os cenários festivos já demonstravam a sobreposição de práticas consideradas pagãs e religiosas. Neste contexto, homens a cavalo, arcabuzeiros, mouriscos e escravos turcos compõem os cortejos animados com música e, muito provavelmente, gincanas e desafios. Podemos argumentar que durante os tempos de certa tolerância mútua, antes da guerra das Alpujarras (1568 e 1571), as festividades de São João, Ansara e Mahrayan se fizeram presentes e partilhadas.

Muitos de nós questionam os mundos e as vivências possíveis de forjar o reverberar mântrico e contínuo, o bloco monolítico e possante sonoro, que sequestra os corpos e afeta o bater do coração, interferindo nos fluxos cardiovasculares. Certamente, essa tessitura polirrítmica emerge ambos dos ardores militares e religiosos cuja funcionalidade em deslocar o psicológico do temor ao fervor (thumos) prova-se historicamente eficaz. Falamos, portanto, de toda a conjuntura histórica na qual emergiu Isabel I (1451-1504), Rainha de Castela e Leão e Rainha Consorte de Aragão,  e como a sua determinação em construir uma rota marítima alternativa para o Oriente, foi amplificada pelo rufar e reverberar dos tambores.

Com a descoberta das ilhas, em 1460, e a valorização dos aspectos geográficos e estratégicos que favoreciam o desenvolvimento das atividades rapinantes almejadas na Costa Subsariana africana, que promoviam a captura e compra de pessoas escravizadas com a intenção de revendê-las a um preço superior para a Europa ou para o Caribe e as Américas, temos informações que as primeiras tentativas de fixação em Santo Antão, sem sucesso imediato, datam de 1548. Não se sabe ao certo se a tecnologia do tambor híbrido do Kolá Son Jon utilizado até hoje nas festividades religiosas e populares veio com os primeiros colonos.

Eventualmente, temos registros sobre a proibição e a punição daqueles que faziam uso dos instrumentos africanos para a “prática de feitiços”. Portanto, tambores percutidos cuja procedência fosse do mundo ao entorno do Mediterrâneo, ou seja, Andaluz e Maghreb, tal como a pedra de moer em formato de disco, usada até hoje no arquipélago e em diversas regiões remotas do Sertão Nordestino, são mais prováveis de terem sido introduzidos em eventuais funcionalidades práticas cotidianas. Contudo, a medida e espessura da membrana da pele de cabrito, de três meses de idade, raspada de pêlos, presa a um arco e esticada sob um véu (cordel que se estende ao longo da pele para efeitos reverberantes) a ponto de, quando afinada através das adriças, produzir um som que nos remete tanto à sonoridade árabe da África do Norte, quanto dos ritmos ancestrais da África Subsariana como Adowa (Akan), diz muito sobre os padrões e modalidades culturais das pessoas que transitaram involuntária e secularmente pela ilha. 

A espessura e o tamanho das esporas (baquetas) que percutem a pele do tambor e produzem uma agência musical polirrítmica que pode, sem dúvida, se assemelhar ao rebentar das ondas nos rochedos vulcânicos da ilha, remetem-nos aos saberes vernaculares locais condicionados às carências naturais do ambiente sócio cultural. 

Assim, quando um tamboreiro líder arranca, do seu tambor, células rítmicas características, conhecidas de memória por outros tocadores da roda, os quais retrucam, prontamente, ao colega e estabelecem as condições de diálogo percussivo, presenciamos um evento rítmico emergente. Este evento sonoro é característico da música percussiva do Maghreb e da África subsariana e, no caso do kolá Son Jon, permite aos tocadores de tambor perceber a sincronia temporal intrínseca aos vários elementos, que funcionam como unidades integradas em vários níveis e percebidas segundo um conceito de tempo musical circular (Lopes, 2017).

Deste evento rítmico emergente, entendido como um fenômeno conceitual e perceptivo legítimo da percussão africana, o grupo de tamboreiros transita para uma dinâmica rítmica resultante. O ritmo resultante se constitui a partir da organização coletiva de estruturas de grupos rítmicos de padrões diferenciados, de modo que cada extensão composta estabelece relações com o pulso regulador, geralmente, sustentado pelos tocadores sob a orientação do tamboreiro líder. O ritmo resultante a partir das combinações de sobreposição, entrelaçamento e adjacência/alternância, constitui um conceito rítmico monolítico (Anku, 1997).

Neste contexto, seguindo Willie Anku no campo de pesquisas, proponho duas formas complementares de análise de uma toca de Son Jon. Primeiro, a perspectiva holística “interna”, ou seja, os pontos de vista dos tamboreiros enquanto avaliam internamente a sua atuação e as relações estabelecidas com o líder e os outros tocadores de tambor. Nesta esteira sonora, encontramos as relações primárias ou simples e as relações secundárias, estas últimas requerem maior grau de habilidade, destreza,  e performance da corporalidade musical do tamboreiro.

Argumento que os temas e as variações do tamboreiro líder são apresentados como uma sucessão de padrões que estabelece várias orientações com o pulso regulador. Os outros tocadores percebem estas variações como forças motrizes que modelam suas percepções de mudança, enquanto alimentam, dialogicamente, o ostinato em pano de fundo, ao longo do qual, integrações possíveis são estabelecidas com cada orientação temática. O melhor líder não impõe, não força. Pelo contrário, cativa habilmente e se eleva na graça do desafio de governar a “cama rítmica” da performance percussiva. 

Em segundo lugar, refiro-me à perspectiva holística “externa”, uma consideração integral da configuração rítmica do grupo de tamboreiros. Basicamente, é através desta perspectiva que as poucas análises e descrições têm sido feitas com respeito ao kolá. Advirto, uma das características dos ritmos africanos é a polirritmia, ou seja a coexistência de ritmos de matrizes diferentes com a intenção de produzir, durante a performance, uma terceira entidade musical. Esta é a característica básica do batuko e mantém-se com relação ao kolá. Normalmente, os padrões rítmicos percebidos a partir da perspectiva holística “externa” não são escutados da mesma forma numa performance em contexto real. Não são reconhecidos com tanta clareza e independência como se assume na teoria (Lopes, 2017, p. 116).

Finalmente, atento-me para o facto destas características elusivas serem comuns nos ritmos do Maghreb e do Oriente Médio, parecidos em dinámica com as modalidades do kolá Son Jon nos compassos 6/4 e 6/8, como é comum nos casos das músicas tradicionais de regiões tão distantes como a Arménia e Azerbaijão ou mais próximas como Marrocos, Mauritânia e Senegal. 

Referências:

Anku, Willie. Principles of Rhythm Integration in African Drumming. Black Music Research Journal. Vol. 17, No. 2 (Autumn). 1997. Pp. 211-238. 

Lopes, Alcides J. D. Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: Música e Sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo. Praia: Pedro Cardoso Livraria. 2017. 

Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston, Massachusetts: Beacon Press. 1995.

Villagra, Mabel. Como cristãos e muçulmanos comemoravam o São João na Idade Média? História Islâmica. https://historiaislamica.com/pt/category/historia-islamica, 21/06/2022. 

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