Voz de Cabo Verde (I)

Por D O em

Em pé, da esq. para dir: Morgadinho, Frank Cavaquinho e Luís Morais. Agachados: Jean da Lomba, Bana e Toy d’Bibia. Foto cedida por Djunga de Biluca

Grupo, 1965 – 1970

O Voz de Cabo Verde tornou-se célebre nos anos 1960 e teve desdobramentos que apareceram até 30 anos depois. Baseado em instrumentos elétricos, tinha como elementos na sua fase inicial Luís Morais (clarinete, saxes e flauta), Morgadinho (trompete), Toy d’Bibia (guitarra), Jean da Lomba (baixo) e Frank Cavaquinho (bateria). Este último, que já se encontrava na Holanda desde 1964 e trabalhava na fábrica de cerveja Heineken, chamou os outros que se encontravam a trabalhar em Dacar, já profissionais da música e atuando em casas noturnas. Como por exemplo o Saloum, cujo proprietário, segundo Morgadinho informou a Cabo Verde & a Música – Museu Virtual, chamava-se Nuna e era natural de Santiago. “Ele era comerciante, proprietário de casas comerciais em Dacar, e sendo um amador de música mandou construir aquele dancing. Fomos [músicos na foto abaixo] o conjunto musical a estrear o dancing”, revelou Morgadinho. Bana também se encontrava na capital do Senegal, onde tinha gravado um primeiro EP pela Pathé Marconi. Chegados a Roterdão, trabalham inicialmente numa fábrica, conseguem equipamentos e começam a tocar.

Na frente da dir. para esq., dois dos futuros membros do Voz de Cabo Verde: Toy d’Bibia e Morgadinho. O terceiro é o trompetista Manel Tidjena. Foto cedida por Morgadinho

No seu livro de memórias, De Ribeira Bote a Rotterdam, Djunga de Biluca, que produziu e editou os discos do grupo, afirma que inicialmente “não se pensava ainda em orquestra, apenas em tocar nas festas de crioulos”. As primeiras gravações do grupo nesse momento zero em que aparecem com o nome – arranjado às pressas – Os Verdianos são para o primeiro LP de Bana, Nha terra. Em gravações que vêm a seguir, a mesma formação já aparece como Voz de Cabo Verde. Acompanham Bana no seu segundo LP, Pensamento e segredo (1966) e em Bana a Paris (1966), este último editado já pelo próprio Bana depois da sua saída do grupo.

O afastamento de Bana, segundo membros do grupo e Djunga de Biluca, (Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens) foi devido a um contrato com o cabaré La Bonanza, cujo dono exigia um cantor mais versátil, que cantasse os ritmos em voga na altura, e Bana só cantava mornas e koladeras. “Então, ficamos sem cantor, e eu tive que cantar”, recorda Morgadinho: “Aprendi o inglês, já falava um pouco de francês, aprendi a tocar baixo para que a gente pudesse tapar os buracos, pois também não tínhamos organista. Jean da Lomba fazia guitarra ritmo, Toy guitarra solo e eu no baixo e a cantar. Quando era necessário trompete, passava o baixo para o Jean da Lomba, o Toy ficava no acompanhamento e eu e o Luís nos sopros”.

Momento de convívio em que além dos membros do Voz de Cabo Verde encontram-se amigos, entre os quais Becona (de pé, atrás de Frank Cavaquim, Djosinha de Bernarda (entre Jean da Lomba e Bana) e Constantino Delgado. Foto cedida por Arnaldo Delgado

Essa fase durou pouco tempo, até entrar em cena Djosinha, que deixou o trabalho que tinha como marítimo para ficar em Roterdão, a partir de 1967, como vocalista do grupo. Sobre a estrutura organizativa do Voz de Cabo Verde, Djunga de Biluca esclarece que Luís Morais era o líder, e como tal era quem respondia pelo grupo na hora dos contratos (A Semana, 04.03.2005).

A importância que o Voz de Cabo Verde veio a ganhar teve a ver com o facto de mexer com a autoestima dos cabo-verdianos. “Havia na Holanda muitos cabo-verdianos a trabalhar na marinha mercante, e como os cabo-verdianos gostam muito de música iam ouvir bons conjuntos. Na época predominavam conjuntos italianos naquela parte da Europa (Holanda, Alemanha, Bélgica, países escandinavos) ”, refere Morgadinho. “Então, eles sentiram um grande orgulho de saber que um conjunto de Cabo Verde estava aparecendo para mostrar o que sabíamos”.

A discografia do Voz de Cabo Verde na sua primeira fase consta de sete LP e quatro EP, gravados entre 1965 e 1969 mas editados até 1972. Misturam-se músicas cabo-verdianas – grande parte de Luís Morais, algumas em parceria com Djunga de Biluca, mas também com frequência de Morgadinho, entre outros autores – e estrangeiras, com destaque para latino-americanas (boleros, cumbias e outros géneros) e brasileiras (sambas, choros, sambas-canção). Vez por outra aparecem também músicas americanas em voga na época. O último disco, Bonita, tem todos os títulos em espanhol, o que já prenuncia um álbum inteiramente de cumbias e outros ritmos do universo latino-americano. Contudo, a autoria de grande parte dos temas gravados pelo grupo nesses ritmos é mesmo de Luís Morais e não de compositores estrangeiros.

Da esq. para dir.: Djunga, Frank, Morgadinho, Djosinha, Toy d’Bibia, Jean da Lomba e Luís Morais. Fonte: Facebook.

O repertório eclético e internacional do Voz de Cabo Verde é justificado por Morgadinho numa entrevista na primeira digressão a Cabo Verde: “As gravações de música da nossa terra são destinadas a uma audiência relativamente reduzida (…) como profissionais que somos, não podemos olvidar o lado comercial da nossa situação, pelo que vamos abalançar-nos às gravações de música internacional, do género do LP Dançando com a Voz de Cabo Verde”. Questionado sobre se isso não traria despesas face aos direitos de autor, respondeu já terem composições suas, de Luís Morais e Frank Cavaquinho suficientes para um novo LP, as quais “sendo originais, não deixam de acompanhar o gosto reinante nos principais centros europeus, no que respeita à música para entreter e dançar” (O Arquipélago, 04.01.1968).

Em dezembro de 1967, o grupo encontrava-se em Lisboa sem perspetivas concretas para os próximos tempos, relata Luís Morais em entrevista ao jornal O Arquipélago (28.12.1967)Mas a 2 de janeiro de 1968 os seis músicos desembarcam em São Vicente, e este jornal dá conta em pormenor da sua estada, desde o momento da chegada: “Manhã cedo e todo o cais era um mar de gente para receber pessoas de família que vinham de fora da província. E entre elas os componentes do já famoso conjunto Voz de Cabo Verde (…) desembarcaram e foram abraçados por centenas de pessoas” (O Arquipélago, 04.01.1968).

Sucedem-se entrevistas e notícias sobre as atuações, que deslumbraram o público mindelense: “O seu primeiro espetáculo ultrapassou o que todos imaginavam. Êxito completo. Com os instrumentos variados e a provocar chispas luminosas (perto de duas centenas de contos eles custaram); com a presença impecável dos seus componentes; com o Eden Park transbordando de gente de todas as classes sociais; o Conjunto apresentou 28 números de classe internacional…” (O Arquipélago, 11.01.1968). “O sucesso do conjunto Voz de Cabo Verde continua de forma extraordinária. Os bilhetes esgotam-se sempre com vários dias de antecedência, sendo já de cinco o número de espetáculos apresentados entre nós, considerando o desta noite. Segundo somos informados por um dos responsáveis pelo conjunto, será dado mais um espetáculo – o último – provavelmente no recinto do Clube Mindelo, de modo a proporcionar ao público em geral e especialmente aos economicamente menos favorecidos, a assistir à sua atuação” (O Arquipélago, 18.01.1968).

Nesse ano, o baile de Carnaval do Parque Miramar foi animado pelo grupo, informa o mesmo jornal (29.02.1968), mas antes disso fazem uma deslocação à Praia, onde passam uma semana intensa, com atuações no Cine-Teatro Municipal em várias festas organizadas em homenagem ao presidente da República e num baile organizado pelo Rádio Clube de Cabo Verde (14.02.1968). Mas a apoteose ainda estava por vir: como despedida, ao fim de mês e meio em Cabo Verde, o grupo decidiu oferecer à população do Mindelo um concerto ao ar livre, no coreto da praça.

“Dos bairros limítrofes acorreu a multidão entusiástica e frenética que ‘assaltou’ positivamente o centro da cidade, caminhando em colunas compactas em direção à praça Serpa Pinto [Praça Nova]”.

O Arquipélago, 14.03.1968, sobre o último concerto do Voz de Cabo Verde no Mindelo.

Mesmo de localidades distantes como Mato Inglês e Salamansa vieram pessoas que durante cerca de duas horas ouviram “extasiadas e entusiasmadas” a música dos rapazes vindos da Holanda. Partiram com planos de voltar no ano seguinte, e com uma alteração na formação: Jean da Lomba, que decidira emigrar para os EUA, foi substituído por Chico Serra, que a partir de então assegura o baixo e teclas.

Ao longo desse ano o Voz de Cabo Verde cumpriu contratos na Holanda; tocou em Paris para a comunidade portuguesa; esteve em Portugal, onde atuou em Coimbra para os estudantes; e em dezembro já se anuncia o seu regresso, naquilo que O Arquipélago (05.12.1968) chama de a “II Tournée de Saudade”. Além de tocar no Mindelo e na Praia, o grupo foi a Bissau para atuar nas festas de fim de ano na União Desportiva Internacional de Bissau (UDIB).

Estava-se em plena luta de libertação. A esse respeito, Djunga de Biluca [na altura uma peça chave, na Europa, da luta de libertação que se desenrolava nas matas da Guiné] escreve nas suas memórias que achou conveniente contactar Amílcar Cabral para saber o que o líder pensava dessa viagem. “Cabral estava muito contente com a formação dessa orquestra que simbolizava e representava Cabo Verde”, escreve. E opinou que deviam ir mas com cautelas, porque podia dar-se o caso de os portugueses quererem que alguém saísse ferido de alguma frente de batalha e usarem isso para a sua propaganda política. Mas ao que consta o grupo atuou apenas em Bissau, no clube de elite que era a UDIB.

Contudo, nesse ano de 1968 algo importante ficou por fazer: “Fomos convidados pelo Bruno Coquatrix [proprietário da célebre sala de concertos parisiense Olympia] para fazer 15 dias de atuações. Infelizmente, não fizemos o contrato, não nos sentíamos seguros, tivemos receio de não estar ainda à altura de tocar no Olympia. Era para ser de 5 a 20 de maio de 1968”, precisa Morgadinho (Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens).

Voz de Cabo Verde e [?]. Fonte: Facebook

Em janeiro de 1969, de volta a Cabo Verde, tocaram no baile de comemoração do primeiro aniversário do Hotel Porto Grande (O Arquipélago, 16.01.1969); no Carnaval, dividiram-se entre a Praia (onde a Pousada Praia Mar apresentou também o Duo Ouro Negro, de Angola) e São Vicente; no fim de fevereiro foram ao Fogo e à Brava. A digressão teve o “alto patrocínio do governador de Cabo Verde, Comandante Sacramento Monteiro e foi organizada pelo Centro de Informação e Turismo”, diz O Arquipélago, acrescentando: “Deverão ir além de Fogo e Brava, ao Sal e a São Nicolau. Às outras ilhas não por que não há condições de utilização de energia elétrica indispensável à atuação do grupo” (O Arquipélago, 20.01.1969). Em Santiago, além da Praia, entre bailes e concertos atuaram em Santa Catarina e no Tarrafal.

Durante todo esse período são abundantes as notícias sobre o grupo e seus elementos – incluindo a que dá conta do casamento de Luís Morais, a 28.12.1968 (O Arquipélago, 09.01.1969). A 8 de março termina a digressão em Cabo Verde (O Arquipélago, 13.03.1969). Partiram então para a Guiné, segundo a edição de 24.04.1969 do jornal (o único em Cabo Verde na época). A 27.11.1969 divulga-se pelo jornal a presença do grupo nas festas do fim do ano e no Carnaval de 1970, mas a viagem em dezembro acabou por não acontecer. Chegaram, contudo, a tempo de participar no Carnaval, entre outras atuações, já sem Toy Ramos (provisoriamente substituído por Baptista Dias), entre rumores de que o grupo está na iminência de acabar.

Uma mesma edição d’O Arquipélago traz na página 2 essa informação, lamentando o facto (29.01.1970), na página 4 há publicidade de atuações na Praia e na página 5 vem um artigo a dizer que a notícia da dissolução não passa de má-língua. Mas a edição seguinte (05.02.1970) refere o fim do Voz de Cabo Verde, exortando-o, enquanto “embaixador da intuição artística cabo-verdiana”, a não se desintegrar.

Em março de 1970, depois uma nova deslocação à Guiné [foram três no total] o Voz de Cabo Verde passa cerca de dois meses em São Vicente, seguindo então para Angola e Moçambique (O Arquipélago, 21.05.1970). No fim de 1970 está de volta a São Vicente, e ao lado d’Os Caites toca numa festa em benefício dos doentes do hospital (O Arquipélago, 17.12.1970). Por essa altura, Djosinha, Chico Serra e Morgadinho acabam também por deixar o grupo.

“Um conjunto é quase como um bom cavalo: corre bem, mas se não tem um jóquei corre de qualquer maneira; não havia um empresário, alguém que dirigisse as coisas, não havia disciplina, o conjunto não pertencia a ninguém. Ficou frágil, ninguém tinha compromisso com ninguém”

Morgadinho, em Cabo Verde & a Música Dicionário de Personagens, sobre as razões da desintegração do Voz de Cabo Verde.

Cerca de um ano mais tarde, uma notícia no mesmo jornal fala de uma noite cabo-verdiana em Bissau, com Voz de Cabo Verde e Djosinha (O Arquipélago, 25.11.1971). Mas as notícias seguintes dão conta do grupo a acompanhar Bana num baile de Carnaval em São Vicente e no encerramento do concurso Miss Cabo Verde, na Praia (O Arquipélago, 17.02.1972). “Registando-se uma casa à cunha” [o Cine-Teatro da Praia], “além das sentimentais mornas e das trepidantes coladeiras na voz inconfundível de Bana, Jorge Sousa e Tony Óscar brindaram a assistência com expressivo repertório do folclore sul-americano e de música pop, e Luís Morais exprimiu a sua virtuosidade na execução primorosa de alguns solos do seu sax dourado” (O Arquipélago, 24.02.1972). Tinha começado uma nova fase.

Em 2014 foi lançada uma fotobiografia do grupo, intitulada Voz de Cabo Verde – A História de um Povo, da autoria de David Santos e Vanessa Sousa.

Discografia

  • Agora e abol, EP, MR, Roterdão, [déc. 1960]. Solistas: Djosinha, Morgadinho.
  • Nova coladera, EP, MR, Roterdão, [déc. 1960]. Solistas: Djosinha, Morgadinho.
  • Ragoce d’manhe, EP, MR, Roterdão, [déc. 1960]. Solistas: Djosinha, Morgadinho, Luís Morais.
  • Voz de Cabo Verde, EP, MR, Roterdão, [déc. 1960]. Solistas: Morgadinho e Luís Morais.
  • Dançando com a Voz de Cabo Verde, LP, MR, Roterdão, 1967.
  • Regresso de Voz de Cabo Verde, LP, MR, Roterdão, 1968. Solista: Djosinha.
  • Instrumental, LP, MR, Roterdão, 1969.
  • Mechê, LP, MR, Roterdão, 1969.
  • Partida, LP, MR, Roterdão, 1969. Solista: Djosinha.
  • Ilha do Fogo, LP, MR, Roterdão, 1971. Solista: Djosinha.
  • Bonita, LP, MR, Roterdão, 1972. Solista: Djosinha.

Ver e ouvir

Agradecimentos a Francisco V. Sequeira e Morgadinho pelo apoio à construção desta página.

error: Content is protected !!