Jotamonte/Jorge Cornetim

Por GN em

Jotamonte, a acompanhar a atuação da banda, no coreto da Praça Nova, Mindelo. Julho de 1998. Foto: Gláucia Nogueira

Jorge Fernandes Monteiro

EUA, 1913 – Mindelo, São Vicente, 1998

Multiinstrumentista, compositor, regente, professor

Jotamonte é um dos compositores cabo-verdianos mais aclamados, tendo criado mornas que se tornaram clássicos. Teve a sua vida entrelaçada à música em diferentes domínios, entre os quais o ensino e a história das bandas municipais.

Nasceu a bordo do navio no qual a mãe partia para a emigração, nos EUA, pelo que o seu nascimento é registado no diário de bordo. Poucos dias depois da chegada, o navio parte novamente, mas naufraga, daí que o seu registo de nascimento só será feito quinze anos depois, já a viver em São Vicente, para onde a mãe o enviara, para viver com uma tia.

Foi no Mindelo, com a chegada de José Alves dos Reis (Nho Reis), regente que durante muitos anos dirigiu a Banda Municipal de São Vicente, que Jorge Monteiro começou a aprender música, ao mesmo tempo que abandonava os estudos – veio mais tarde a frequentar um curso de nível médio em Portugal, formação que lhe permitiu lecionar no ensino liceal.

Tocou na Banda Municipal de São Vicente durante vários anos e, a certa altura, na da Praia. “Por volta de 1938, fui primeiro trompetista da banda da Praia cerca de oito meses [terá nascido nessa altura a outra alcunha por que é conhecido, Jorge Cornetim, já que esta era a designação popular deste instrumento]. Como não me adaptei ao meio, regressei a São Vicente em 1939”, revela o músico numa entrevista ao jornal Terra Nova (setembro 1991). Começou então a dar aulas de canto coral no liceu de São Vicente, onde teve como alunos Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Abílio Duarte, entre outros.

Em 1945 – prossegue o seu relato –, ao liderar um grupo musical da Académica de São Vicente numa digressão à capital, foi convidado pelo presidente da câmara a assumir a banda. Assim, Jorge Monteiro inicia em 1946 um período de 21 anos como regente da Banda Municipal da Praia. Dos primeiros tempos desta fase, Fernando Quejas, que deixou Cabo Verde pouco tempo depois, contava que Jotamonte o punha “de castigo” a ouvir o ensaio da banda, para depois perguntar a sua opinião (Cabo Verde & a Música – Dicionário de Personagens).

Outros músicos que com ele conviveram nesta altura foram Manuel Clarinete e Cesário Duarte, ambos vindos de São Vicente nos anos 1950, e que entram na banda sob o seu comando, assim como Ano Nobo, seu aluno e acompanhante, ao cavaquinho, quando tocavam em bailes. Na Praia, atuava nas emissões da RCCV, com músicos como os irmãos Hermes e Ângelo Lima, Pipita Bettencourt, Fernando e José Quejas (O Arquipélago, 30.09.1965), entre outros, e também lecionou no liceu da capital.

Só em 1967, com a morte de Nho Reis, é que Jotamonte voltou a viver em São Vicente, agora a substituir o seu mestre. “Encontra-se em São Vicente o maestro Jorge Monteiro que foi transferido do liceu da Praia para o de São Vicente, como professor de canto coral. Jorge Monteiro encontrava-se ausente de São Vicente há cerca de 21 anos”, assinala O Arquipélago (02.02.1967). A partir de então, começou a promover concertos de música erudita, alguns dos quais ficam registados nas páginas desse jornal: “Embora não totalmente cheio, o Eden Park registou ainda assim uma boa assistência que aplaudiu com sinceridade o concerto musical que a Banda Municipal de São Vicente deu sob a regência do mestre Jorge Monteiro. Naturalmente que o público não estava confiante naquilo que se vinha anunciando; estava mesmo incrédulo, e por isso não foi ao Eden Park de forma a preencher todos os seiscentos lugares…” Mas quem foi, lê-se, “aplaudiu com entusiasmo e até com certa admiração e orgulho (…) por verificar como foi possível a Jorge Monteiro ter conseguido tanto em tão pouco tempo, de elementos pouco afeitos à música daquela natureza” (O Arquipélago, 23.11.1967; 14.12.1967).

Dois anos depois, há na imprensa o registo de outro espetáculo, alusivo ao dia de Santa Cecília, padroeira da música. Houve pouquíssimo público, ao contrário do que se verifica “quando qualquer conjunto se apresenta”, refere o jornal, que elogia a performance da banda e revela: “Pela primeira vez pudemos apreciar a adaptação de uma morna ao estilo clássico. Realmente “Oswalcântara” foi uma fantasia de Jotamont que agradou plenamente” (O Arquipélago, 27.11.1969). Destes concertos – para muitos, ocasião do seu primeiro contacto com a música erudita – Carlos Gonçalves (no texto biográfico que acompanha a publicação Música caboverdeana – Mornas para piano, 1995) recorda “a imagem de Jotamonte, vestindo um fato preto, em cima de um estrado, com a batuta na mão, dirigindo a banda, uma música suave, com os tempos fortes e exaltantes”, no pátio do liceu Gil Eanes.

Intransigente com as “deturpações” introduzidas nas composições pelos “tocadores” – para ele, Cabo Verde não tinha músicos –, transcreveu dezenas de temas com a intenção purista de fixá-las tal como foram criadas. Nos anos 1960, tenta obter apoio financeiro para realizar uma recolha em várias ilhas, que deveria resultar na publicação de três volumes, um com temas de Eugénio Tavares, outro de B.Léza e outro reunindo vários compositores. Uma carta de Baltasar Lopes da Silva (dossier B.Léza, Arquivo Nacional de Cabo Verde) dá conta dessa tentativa. Mas as autoridades coloniais da época não se interessaram pelo assunto. A publicação das suas transcrições só ocorre a partir de meados dos anos 1980.

Nessa altura, a propósito de partituras de mornas transcritas por Vasco Martins e publicadas na revista Ponto & Vírgula (nºs 6 e 7), envolve-se numa acirrada polémica com este músico, movendo-lhe verdadeira campanha, em que utiliza não só a imprensa mas também montras de lojas em Mindelo, onde afixa os seus panfletos. Curiosa contenda, em que as suas réplicas trazem trechos de partituras legíveis apenas por músicos com formação teórica.

Selo dos Correios de Cabo Verde homenageia Jotamonte

Reformado como professor em 1973, a seguir à independência, Jotamonte viveu algum tempo em Portugal, e a certa altura viajou para o Brasil. A sua passagem por Minas Gerais ficou registada numa carta elogiosa que recebeu do regente João Duarte Serrado, responsável por quatro bandas da região de Belo Horizonte: “O tempo tão curto que esteve entre nós demonstrou clareza em seus sentimentos, pulso firme para dirigir, capacidade e técnica para dirigir qualquer tipo de organização musical, como professor absoluto em seus métodos de criatividade…” (Terra Nova, junho 1993).

No seu regresso a São Vicente, apesar de atingir o limite de idade dos funcionários públicos em 1983, reassumiu a banda, onde permaneceu até 1992, quando, aos 79 anos, teve de entregá-la. Esta decisão da Câmara Municipal, que na altura lhe fez uma homenagem, feriu-o profundamente. Mas enquanto viveu, Jorge Monteiro não se afastou da banda. Em 1998, a poucos meses da sua morte, domingo após domingo, lá estava ele no coreto da Praça Nova, a conferir na partitura cada tema tocado sob a batuta de Luís Morais. Este, depois de os músicos guardarem na Casa da Música os instrumentos, punha Jotamonte no carro e deixava-o à porta de casa. Se a Casa da Música (escola e quartel-general da banda) tem Nho Reis como patrono, Jorge Monteiro dá nome à Academia de Música do Mindelo, inaugurada em janeiro de 2005.

Entre as múltiplas facetas deste complexo personagem, que vai do controvertido ao divertido – as histórias mirabolantes que contava passaram de boca em boca –, há a lembrar ainda que Jotamonte foi um pioneiro no que se refere aos discos gravados e editados em Cabo Verde. No fim dos anos 1950, o disco que inaugura a série editada pela Casa do Leão com o título Mornas de Cabo Verde tem a sua assinatura na direção musical e são da sua autoria os quatro temas interpretados por Mité Costa nesse EP.

 A sua produção enquanto compositor de mornas gira à volta de 35 temas, dos quais menos de metade se encontram gravados. “Dez grãozinhos de terra”, “Nha confissão”, “Sancente” (ou “Mindelo”) e “Fidjo magoado” são os mais conhecidos. Prenhes de um nacionalismo ingénuo e derramado, são entoados pelos cabo-verdianos como verdadeiros hinos.

“Fidjo magoado”, uma das suas mornas mais conhecidas, causou problemas para Jotamonte durante a guerra colonial. Não que o músico estivesse envolvido na luta pela independência de Cabo Verde, mas uma gravação desta composição era utilizada como abertura das emissões da Rádio Voz de Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacry. A letra fala em “povo sofredor”, na tristeza por esse facto e na fé de que um dia o sofrimento iria acabar. Jotamonte foi chamado à PIDE, polícia política do regime salazarista, pois considerou-se que ele teria composto a música para o PAIGC, como refere Moacyr Rodrigues na sua tese sobre a morna. Na sequência desse episódio, e para livrar-se das suspeições que o podiam prejudicar, Jotamonte compôs a marcha “Portugal um país de liberdade”, que ao longo de anos ensinava aos seus alunos no liceu. Um episódio anedótico coloca a morna, que exalta o regime salazarista, a ser tocada pela Banda Municipal do Mindelo em 1997, durante uma visita do então primeiro-ministro António Guterres à cidade. Sem a letra, mas esta estava ainda na memória dos seus antigos alunos.  

Composições

Adeus; Bai ta Rola; Bia Cretcheu Estremecida; Bô É Morena; Cabo Verde Terra Estimada; Carga de Quate; Castigo Divino; Consolação; Coração Scrabo; Creolinha; Dez Grãozinho de Terra; Disgraça na Ninho; Djena; Fidjo Magoado; Gradecimento (parceria com Silvestre Faria); Inginher Humano; Lola di Meu; Lolinha; Luz di Bo Olhar; Mindelo Nha Terra; Nha Confissão; Nha Tormento; Nôs Mãe; Pa-me Nascê… ´M Sofrê; Parabéns Tchida; Terra Minha (parceria com Rato de Almeida); Saia Curta; Santo e Bo Nome; Saõcente; Só te Vejo a Sonhar; Sodade; Somada; Sonte Milagroso; Tartaruguinha; Tchutchinha; Terra Minha; Tud´Cruz ê Pesado; Virtude.  

Publicou

  • Música caboverdeana – Mornas de Jorge Fernandes Monteiro, Gráfica do Mindelo, SV, 1987. 27 mornas – partitura e letra.
  • Músicas de Cabo Verde – Mornas de Eugénio Tavares transcritas por Jótamont, Gráfica do Mindelo, SV,1987. 19 mornas – partitura e letra.
  • Mornas e contra-tempos coladeiras de Cabo Verde, Gráfica do Mindelo, SV, 1987. Recolhas e explicação sobre a koladera. Mornas de B.Léza, Lela d’Maninha, Pitrinha, Jorge Barbosa, Sérgio Frusoni, Luluzim, Tututa e Paulino Vieira. Contratempos: “Tartaruguinha” (Jotamonte), “Nha Codé” (Pedro Cardoso), “Oi Armando” (Goy), “Manchê” (popular).
  • Música de Cabo Verde – Mornas de Francisco Xavier da Cruz (B.Léza), Gráfica do Mindelo, SV, 1987. 20 mornas – partitura e letra.
  • Mornas para piano, Gráfica do Mindelo, SV, 1988. 56 mornas de vários autores – partitura e letra. 
  • Música caboverdeana – Mornas para piano, Instituto Camões, Praia/Mindelo, [1995]. Caixa com 29 mornas de Jorge Monteiro, partitura e letra, acompanhadas de brochura com texto biográfico por Carlos Gonçalves.
  • Música ao alcance de todos, s/d, [1991]. Introdução à teoria musical e método prático de violão.

Ver e ouvir

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